Os acidentes de jet ski e a responsabilidade civil
quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
Atualizado em 28 de fevereiro de 2012 10:04
O mês de fevereiro de 2012 registrou ao menos quatro acidentes com mortes trágicas envolvendo jet skis: um na Bahia, outro no Piauí e dois em São Paulo. O de maior repercussão ocorreu em Bertioga-SP e causou o óbito de uma menina de apenas três anos de idade.
Surpreendentemente, a criança brincava na areia quando foi atingida pelo veículo que a arremessou longe.
Atropelamentos de banhistas por jet skis acarretam inequivocamente responsabilidade civil, independentemente da responsabilidade penal.
Há duas espécies de responsabilidade civil: a subjetiva e a objetiva. A primeira (art. 186 do CC) exige a demonstração da culpa para a sua configuração, a segunda não.
O art. 927, parágrafo único, do CC, prescreve a responsabilidade objetiva (independente de culpa) quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. O uso de jet ski em praias usadas por banhistas enquadra-se como atividade de alto risco, principalmente pela velocidade e rapidez dessas potentes máquinas, que não têm freios e são destinadas exclusivamente ao lazer.
A sua utilização deveria ser proibida nesses ambientes ou deveriam ser reservados espaços bem definidos para a prática desse tipo de esporte. O jornal Folha de São Paulo publicou anteontem (27/2/2012) que São Paulo já tem cerca de 27 jet skis para cada quilômetro de sua costa (clique aqui). O número é excessivo. O veículo põe em risco não somente seus usuários mas todos que frequentam as praias, inclusive crianças indefesas como demonstraram os fatos recentes.
Em 1967, o Dec.-lei 116, acolhendo a teoria do risco, já impunha tanto ao condutor de barco, como a seu proprietário, a obrigação de reparar prejuízos, mesmo sem a comprovação de infrações inerentes à navegação. Portanto, a responsabilidade já existia independentemente de culpa, antes da novidade trazida pelo CC de 2002, no parágrafo único do art. 927 (atividade de risco).
Ainda que tenha haja falha mecânica do equipamento, tal argumento não afasta a responsabilidade civil objetiva (fortuito interno).
Portanto, o proprietário do veículo, na condição de dono, é responsável.
Os pais ou representantes legais de menores que se envolvam em acidentes desse tipo também são responsáveis (art. 932, I, do CC), mesmo que não tenham concorrido com culpa.
Caso haja participação de caseiro ou de qualquer empregado, eles também serão pessoalmente responsáveis. E o patrão dos empregados que contribuem para o infortúnio também respondem pelos prejuízos (art. 932, III, do CC).
Eventuais menores envolvidos, se têm bens em seus nomes, também podem ser alcançados pelas vítimas se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes (é o que consta do art. 928, caput, do CC). Mas, se isso ocorrer, a indenização deve ser "equitativa" e não prevalecerá se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependam (parágrafo único).
Esse artigo de lei é de uma infelicidade ímpar. O menor deveria ser solidariamente responsável. Não faz o menor sentido preservar o seu bem estar em detrimento da vítima. A sua presumível falta de discernimento não pode justificar a irressarcibilidade do prejuízo por ele causado na integralidade. O caso do jet ski é um bom exemplo para demonstrar isso. A indenização não deveria ser equitativa nem nessa hipótese, e sim total.
Lars Grael, conhecido velejador brasileiro e vítima de acidente náutico que decepou uma de suas pernas em 1998, concedeu anteontem entrevista à Bandnews (ouça aqui), advertindo sobre os diversos problemas que contribuem para esse cenário de completa irresponsabilidade: o policiamento marítimo não existe por ausência de guarda costeira, os poderes públicos são omissos, não há fiscalização dos usuários de embarcações, não se punem os infratores, etc.
Ele termina a entrevista observando que nem mesmo o caso dele, de repercussão nacional, acarretou ao infrator qualquer espécie de punição. Quatorze anos depois do acidente.
Enfim, o presente texto é mais um apelo do que propriamente um artigo jurídico. A sociedade precisa se mobilizar. Todos têm parcela de culpa pelo que vem acontecendo. O Poder Legislativo por não criar leis mais rígidas (ex: atualmente, para solicitar carta de habilitação de arrais amador não é necessário fazer prova prática, apenas teórica), o Poder Executivo por não fiscalizar (para alugar um jet ski a maior parte das locadoras sequer indagam a idade do locatário, tampouco se possuem habilitação para tanto) e o Poder Judiciário por insistir em indenizações simbólicas, que não inibem de forma alguma condutas ilícitas. Sempre sob a frágil e incompreensível justificativa de que a indenização por dano moral não se presta ao enriquecimento ilícito, como se o cidadão brasileiro estivesse permanentemente em busca de algum dano para depois pleitear indenização, fazendo disso uma forma de viver.
Dinheiro nenhum indeniza dano moral decorrente da perda de ente querido, é verdade. Porém, as condenações devem ser altas, pois uma das finalidades da indenização por dano moral é a de efetivamente inibir condutas ilícitas. Talvez isso possa, a longo prazo, contribuir para a conscientização das pessoas que agem irresponsavelmente, na firme expectativa de que são imunes aos acidentes e tragédias.