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Casamento descartável

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Atualizado em 18 de outubro de 2011 11:43

No México, a imprensa noticiou, há pouco tempo, tramitação de projeto de lei que visa a mudar o Código Civil mexicano, com a finalidade de criar casamentos renováveis a cada dois anos. A questão ainda está em discussão e os objetivos principais seriam os seguintes: desafogar o Poder Judiciário local, criar a possibilidade de estipulação prévia de eventual verba alimentícia devida aos filhos ou entre os cônjuges, determinar o tempo de duração da pensão, entre outros ajustes (clique aqui).

Ideias desse tipo refletem menos a preocupação com o acúmulo de serviço do Judiciário e mais a mudança social pela qual vem passando o mundo inteiro.

O consumismo e a superficialidade das relações humanas têm conquistado cada vez mais espaço na sociedade moderna. As pessoas são aquilo que consomem, os objetos que compram, os restaurantes que frequentam, os carros em que andam, o bairro onde moram, as viagens que fazem. Essas valem tanto pelo prazer que geram a seus protagonistas quanto pela imagem e impressão que causam no seu círculo social. Ser "bem sucedido" confere prestígio numa sociedade que valoriza o consumo; isso traz benefícios, diretos e indiretos. Daí a importância de ostentar prosperidade, ainda que aparente. Em suma, a obstinação pelo consumo desenfreado está transformando, lentamente, o modelo social vigente.

Como consequência dessa modificação de valores e comportamentos, compram-se coisas supérfluas, descartam-se objetos em perfeito estado de funcionamento, apenas porque outros mais modernos são lançados. Normalmente, apresentando apenas novidades estéticas ou funções que nunca foram necessárias.

Nas redes sociais, uma das preocupações de seus usuários é a de ter grande quantidade de amigos, ou "seguidores", informação sempre presente logo na primeira página dos sites. E essa referência é sempre pública. Não se pode omiti-la. Ter poucos amigos compromete. Pode passar a imagem de pessoa murcha, solitária, macambúzia. A afinidade entre os amigos virtuais é absolutamente irrelevante. Trata-se de uma dinâmica diferente de se relacionar.

O mundo globalizado vem, aos poucos, uniformizando essa forma ostentosa, espetaculosa e exibicionista de viver. Os relacionamentos, não raras vezes, são pautados por interesses; os momentos simples e reconfortantes, de convivência com a família e com os (verdadeiros) amigos, de conversa desinteressada, de leitura, de relaxamento e de reflexão, tornaram-se cada vez mais escassos. Os períodos de lazer, quando há, são todos calculados como parte integrante dessa nova e complexa configuração da forma atribulada de viver. A internet encarrega-se de ocupar eventual tempo vago.

No âmbito afetivo, o fenômeno é o mesmo. As relações duradouras, em alguns círculos, são vistas com certo preconceito, a revelar, em muitos casos, falta de coragem para mudanças, acomodação ou mesmo ausência de outras opções (melhores) para seus adeptos.

O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, em seu livro "Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos", estabelece com destreza a correlação entre o consumismo, que se dá não para atender propriamente um desejo, mas sim um impulso, com as relações amorosas. Citando Catherine Jarvie, ele diz: "Uma relação de bolso bem sucedida, diz Jarvie, é doce e de curta duração. Podemos supor que seja doce porque tem curta duração, e que sua doçura se abrigue precisamente naquela reconfortante consciência de que você não precisa sair do seu caminho nem se desdobrar para mantê-la intacta por um tempo maior. De fato, você não precisa fazer nada para aproveitá-la. Uma 'relação de bolso' é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade".

Por tudo isso, nada mais oportuno do que um casamento temporário, com data prefixada para acabar. Que só dure enquanto for bom, prazeroso, sem percalços e contratempos. Não se tem mais tempo, disposição e paciência para construir uma relação mais sólida, que enfrente e supere os seus desgastes naturais, com maturidade, companheirismo, criatividade e renovação. Imaginemos a conversa:

- Amor, quanto tempo falta mesmo para o nosso casamento acabar? Eu não te aguento mais...

A discussão sobre o casamento temporário, embora ocorra extramuros, choca. Choca porque enfraquece a família. É muito mais fácil "não renovar" o matrimônio do que tomar a iniciativa de um divórcio.

Apesar disso, é possível que, se aplicada essa espécie de "casamento descartável", o tempo demonstre efeito exatamente contrário. A prerrogativa que uma das partes tem de não querer "renovar" o casamento por mais dois anos pode fazer com que ambos nutram melhor a relação. Por isso, o enfraquecimento jurídico do laço matrimonial pode ter efeito fortificador na afetividade.

Embora a ideia pareça bizarra, a verdade é que não se pode mais sustentar um casamento se não existe afeto. Ninguém pode ser obrigado a suportar a companhia de outra pessoa porque fez a promessa de amor eterno. Ou porque tem filhos. Entender o contrário atenta com maior gravidade contra a harmonia da família, a integridade psíquica (e física) de seus membros e também contra a paz social.

Não se deve mais, em face dos valores modernos, questionar quem é o culpado pelo rompimento de uma união afetiva. A falta de amor e de afeto não se conectam à culpa. Ninguém pode ser considerado culpado por deixar de amar. Eventual culpa pode haver na forma de se comportar em face do outro, desrespeitando, traindo, etc. Nesses casos, a culpa deve continuar sendo relevante, inclusive para possíveis efeitos indenizatórios. O desamor não pode acarretar indenização.

Não se quer, com isso, dizer que a EC 66/2010 acabou com a discussão sobre a culpa na separação, tampouco que não existe mais separação no Direito brasileiro (a propósito, em nossa opinião, não é isso o que consta da referida EC, a despeito do que alguns renomados juristas vêm afirmando). As considerações são feitas apenas abstratamente.

No Brasil, de certa forma, a facilitação do término do casamento já existe, em determinadas circunstâncias, com o divórcio extrajudicial. E as leis devem mesmo refletir o que se passa na sociedade. Por isso, em vez de analisá-las apenas para criticá-las, é importante refletir além delas, sobre o comportamento que temos adotados nos últimos tempos.

E, nesse sentido, o egoísmo, a sede desmedida pelo êxito profissional, pela boa remuneração, pela aparência de altivez, que permite consumir ilimitadamente o descartável e desnecessário, precisam ser objetos de reflexão. José Renato Nalini, em janeiro de 2000, publicou na Revista de Direito Privado (DTR/2000/65), um artigo em que dizia: "O individualismo conduzido até às últimas consequências cerra as portas para o afeto desinteressado. Quanta vez as relações se estabelecem fundadas no interesse, na conveniência, nas vantagens de toda ordem, menos as ditadas pelo coração. A família precisa ser uma usina de amor. Toda a crise universal pode ser resumida à falta de amor. E este ingrediente é insubstituível na construção de seres equilibrados, bem posicionados na vida e suficientemente fortes para enfrentar as intempéries reservadas a todo vivente".

Quanto aos aspectos técnicos da ideia mirabolante, parece que a solução alvitrada não gera qualquer benefício significativo. Discutir eventual pacto antenupcial para alterar o regime de bens do casamento já costuma ser um tormento. Não é difícil imaginar o que ocorreria se os casadouros tivessem que, antecipadamente, arbitrar o valor de eventual pensão alimentícia, guarda de filhos, etc. E o que for combinado pode não ser justo no momento do pagamento, porque as circunstâncias e o patrimônio frequentemente sofrem alterações. Além disso, haverá inúmeras situações em que os cônjuges continuarão juntos, porém sem renovar o casamento. Qual seria, nesse caso, o estado civil deles? Esses são apenas alguns dos diversos inconvenientes que podem ser apontados. Tudo indica, os verdadeiros problemas não serão solucionados.

Conheço de algum lugar essa inquietação de tentar resolver todos os problemas editando lei nova...