A venda do bem de família pode caracterizar fraude?
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
Atualizado em 27 de setembro de 2011 11:07
Recentemente, meu amigo Luiz Carlos, também advogado, perguntou minha opinião sobre a seguinte situação: um casal queria vender uma casa adquirida havia bastante tempo, sempre utilizada para a moradia, sendo portanto protegida pela impenhorabilidade destinada ao bem de família (lei 8.009/90). Porém, diversas ações de execução e de cobrança tramitavam contra tal casal. Em resumo, ele queria saber se poderia autorizar, como advogado, a compra do referido imóvel com alguma segurança, uma vez que, sendo bem de família por força da lei 8.009/90, a casa jamais poderia ser alcançada pelos credores então existentes. Logo, a sua venda não frustraria quaisquer credores. Antes de responder seguem algumas observações preliminares.
Conforme expusemos no texto de 14/9/2011, os bens do devedor constituem garantia implícita a todo e qualquer credor, de acordo com o que preceitua o art. 591 do CPC. Por isso, aquele que esvazia o seu patrimônio com o objetivo de não pagar aquilo que deve comete fraude. Fraudar é frustrar a expectativa do credor. Logo, quem não frustra direito do credor, a contrário senso, não comete fraude. A conclusão é lógica e óbvia, mas merece sempre ser lembrada porque a análise da validade ou eficácia de uma alienação pode depender do subsequente comportamento do devedor, alienante.
Aquele que, sendo devedor, vende um imóvel de R$ 500 mil por R$ 500 mil, não sofre nenhuma diminuição patrimonial. Óbvio. Ao contrário, em tese (e somente em tese) facilita a vida do credor porque é melhor que o devedor tenha dinheiro do que bem imóvel. Então, por que cargas d'água tal alienação pode ser considerada fraudulenta? A resposta é igualmente óbvia: porque o dinheiro "desaparece"; o imóvel não. Quem pode evitar o infortúnio do credor, em circunstâncias como essa, é o adquirente, que tem um leque enorme de alternativas para vasculhar a vida pregressa do vendedor, a começar pela matrícula do imóvel e pelas certidões, cíveis, de protesto, trabalhista, etc. Sem contar os sites dos tribunais e o próprio google.
Se o devedor que aliena um imóvel, bem de família ou não, quita em seguida suas dívidas, não há fraude, evidentemente. Ressalva feita às situações excepcionais de premeditação do devedor, que já levaram o STJ a flexibilizar o requisito da anterioridade do crédito, conforme referido na Civilizalhas nº 8.
O cenário acima exposto, de pagamento, em princípio não importa para o direito porque, se os credores são satisfeitos, não há discussão. Importa sim a situação de dívida não paga pelo devedor-alienante, ou quando não puder ser paga, dado o seu alto valor. O raciocínio sugerido pelo meu amigo Luiz Carlos tem lógica. Se o imóvel permanece com o devedor, sendo utilizado para a sua moradia, o interesse do credor sempre será afastado diante da alegação do bem de família. Logo, se ele vende sua casa a terceiro, transformando-a em dinheiro, em princípio não piora em nada a situação de seus credores. Mesmo que o dinheiro "desapareça" em seguida.
Seguindo exatamente esse raciocínio, a 4ª Turma do STJ (REsp 976566/RS) já proclamou que "não há fraude à execução na alienação de bem impenhorável nos termos da lei 8.009/90 tendo em vista que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o exequente nenhum interesse jurídico em ter a venda considerada ineficaz". A 2ª Turma também já decidiu assim (REsp 846897/RS).
A lei 8.009/90 blinda o imóvel residencial do devedor, que não perde a sua moradia pelo fato de não pagar suas dívidas, com as exceções feitas pelo art. 3º (dívida de alimentos, hipoteca, fiança em contrato de locação, etc).
A proteção conferida ao devedor pela lei 8.009/90 é extremamente importante porque respeita a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, direitos firmemente assegurados pela Constituição Federal. No entanto, tal medida é excepcional. Excepcional porque sacrifica o credor. E o credor não é vilão, embora muitas vezes seja tratado como tal. É importante lembrar que os créditos podem nascer da vontade das partes, como um empréstimo feito por instituição financeira, mas também podem nascer de atos ilícitos praticados pelo devedor. E embora a lei não faça distinção, tanto o mutuante (que pode escolher entre emprestar e não emprestar) e a vítima de um dano decorrente de ato ilícito (que naturalmente não escolhe essa condição), estão na mesma situação em face do devedor que alega o bem de família. Prevalece o direito do solvens, ainda que do outro lado haja interesse igualmente relevante a ser tutelado.
Porém, para que haja a concessão desse benefício de impenhorabilidade ao devedor, é necessário que ele, ou sua família, resida no imóvel. É o que está claro nos artigos 1º e 5º da referida lei 8.009/90.
O bem de família, apesar de ser impenhorável, é alienável por vontade do devedor, diferentemente do bem de família do CC. Se o devedor vende seu imóvel é porque renuncia àquela moradia protegida por lei. Parece-nos essa a interpretação mais adequada em vista do caráter de excepcionalidade da lei. Mesmo que a sua intenção verdadeira não seja a de abrir mão do benefício. Mesmo que o seu objetivo seja adquirir outro imóvel residencial para morar, em outro bairro ou município por exemplo. A sua liberdade de movimentos negociais deve ser tolhida enquanto existe a dívida. Talvez, em circunstâncias excepcionais, fosse o caso de autorizar judicialmente essa sub-rogação de proteção, de um imóvel vendido para outro a ser comprado. Mas nunca o de assegurar a inexistência de fraude por alienação do bem de família, em face da sua impenhorabilidade. Isso porque a causa da proteção é a moradia. A partir do momento que o devedor não mora, o imóvel ou o produto de sua venda passa a ser penhorável.
Há outros casos conhecidos de relativização desse pressuposto (moradia), por exemplo, quando o devedor não mora em seu imóvel porque o mantém alugado, mas prova que com a renda desse contrato paga o aluguel de sua moradia. Com o devido respeito, parece que esse seria outro caso de aplicação equivocada da lei. A flexibilização de algumas decisões do STJ quanto a esse assunto, embora inequivocamente vise à Justiça, fissura o principal requisito legal para a concessão desse benefício, que é a moradia de fato pelo devedor ou sua família.
A prevalecer tal espécie de raciocínio, que estende a aplicação do bem de família sem que haja a efetiva moradia, seria o mesmo que reconhecer que cada cidadão tem o direito de ter blindado uma parte do seu patrimônio (independentemente da moradia), desde que prove que de alguma maneira isso contribua para a manutenção de seu lar. Exemplo: aquele que tem R$ 500 mil reais em aplicação bancária pode, pelo mesmíssimo raciocínio, pretender a impenhorabilidade do numerário se provar que os juros do investimento são destinados ao pagamento do aluguel de sua moradia.
E como fica a súmula 375 do STJ, segundo a qual somente há fraude com o registro da penhora na matrícula do imóvel ou prova da má-fé do adquirente? Sobre ela, cabem duas apressadas considerações: 1) o registro da penhora na matrícula gera presunção absoluta de má-fé; 2) em que pesem diversas decisões em sentido contrário, aquele que adquire um bem de uma pessoa que tem diversas ações contra si ajuizadas, de fácil constatação por meio de certidões simples, não age com a diligência do homem médio. Ao contrário age com culpa grave e ausência da boa-fé objetiva, o que deve equivaler à má-fé para efeito de caracterização da fraude. Mesmo não havendo anotação na matrícula do imóvel.
Tais reflexões, superficiais nesse espaço, visam não à crítica, mas servir de estímulo para nova análise em torno desses problemas antigos e de outros interesses a serem protegidos, tanto do devedor quanto do credor.
Por isso tudo, Luiz Carlos, apesar de algumas decisões chancelarem compras feitas nessas condições, eu não compraria o bem.