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Bullying e responsabilidade civil

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Atualizado em 30 de agosto de 2011 10:53

O verbo to bully, segundo o dicionário inglês Longman, tem dois significados similares, a saber: "1. to threaten to hurt someone or frighten them, especially someone smaller or weaker; 2. to put pressure on someone in order to make them do what you want".

Traduzindo livremente, pratica bullying quem ameaça, fere, amedronta, intimida ou assusta outra pessoa, menor ou mais fraca. Há pressuposição de atos repetitivos para a caracterização do bullying. Do contrário, configura-se apenas um quick bullying ou uma violência isolada, como é o caso de uma briga. Essa espécie de investida é bastante comum entre crianças e adolescentes.

O bullying tem potencial para gerar enormes danos em suas vítimas, principalmente em crianças, pela imaturidade e falta de desenvolvimento adequado para suportarem, ilesas, a violência (física ou moral). Segundo os psiquiatras, tal hostilidade pode causar estresse, ansiedade, fobias, enxaqueca, taquicardia, depressão, hiperatividade, entre outros malefícios. Em alguns países, o bullying já foi considerado causa de suicídio.

No Brasil, há pouco tempo, em abril de 2011, o debate sobre o tema ganhou ainda mais destaque por causa da tragédia ocorrida em Realengo, Rio de Janeiro, quando um ex-aluno de uma escola assassinou covarde e brutalmente 12 crianças indefesas, sob a justificativa de que teria sido vítima de bullying na infância.

O bullying é extremamente nocivo e gera responsabilidade civil, mesmo que praticado por menor, relativa ou absolutamente incapaz. Sobre o assunto, seguem algumas considerações.

1) De acordo com o que estabelece o art. 227, caput, da Constituição Federal, com redação dada pela EC nº 65, de 13.07.2010, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, à liberdade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Portanto, além dos efeitos civis, concernentes à reparação do dano, há comando constitucional para o Estado, a sociedade e a família agirem preventivamente, com o objetivo de preservação da criança, do adolescente e do jovem. Direitos similares são prescritos pelo art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

2) A regra geral de responsabilidade civil determina que o causador do dano, sendo capaz, deve responder civilmente, com os seus próprios bens (art. 942, primeira parte, do CC). No entanto, em situações excepcionais, admite-se que terceiro seja alcançado para efeito reparatório. O art. 932 do CC é o principal artigo de responsabilidade civil por ato de terceiro, também conhecida por responsabilidade civil indireta. Preceitua o inciso I do referido artigo que são também responsáveis pela reparação civil "os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia". Portanto, os pais respondem civilmente pelos atos praticados por seus filhos menores, nos termos do art. 932, I, do CC.

3) O art. 932, em outro inciso (IV), prescreve que são também responsáveis "os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos". Assim, a escola também pode ser responsabilizada pelos danos causados por menores que estejam sob sua custódia.

4) A responsabilidade civil dos "indiretamente responsáveis" é objetiva (art. 933 do CC). Vale dizer, mesmo que não haja culpa de sua parte, serão alcançados pela vítima. E o art. 942, parágrafo único, do CC impõe a solidariedade entre as pessoas designadas no art. 932. Quer isso dizer que a vítima pode cobrar a reparação do dano, na íntegra, de qualquer responsável, isolada ou conjuntamente.

5) E o menor? Pode ele responder com seus próprios bens pelos danos a que deu causa? Embora normalmente o menor não tenha bens em seu nome, há situações excepcionais que justificam a análise. E, nessa parte, o Código Civil de 2002 trouxe importante - e questionável - inovação. O art. 928 estabelece a responsabilidade subsidiária do incapaz, com certa complexidade, a saber: "O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes". E o parágrafo único desse artigo dispõe que a indenização deve ser equitativa e não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

O artigo é ruim e de difícil exequibilidade. A responsabilidade do incapaz deveria ser solidária. Não há razão para preservar o patrimônio do incapaz causador do dano e deixar a vítima dos prejuízos por ele causados em situação jurídica inferiorizada. Nesse sentido, a indenização não deveria ser por equidade e sim pela integralidade do prejuízo experimentado pela vítima. Também não deveria ser atribuído à vítima o incômodo ônus de identificar precisamente contra quem ele deve ajuizar a ação, ou seja, se o menor pode ou não responder em face das limitações impostas pelo art. 928 do CC.

6) Apesar dos inconvenientes apresentados pela redação do art. 928 do CC, a responsabilidade civil por bullying não é necessariamente afetada por referidos inconvenientes. Isso porque o bullying, praticado por menor (entre 12 e 18 anos), também é ato infracional, conforme preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com o art. 103 do ECA, "considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal". E o art. 116 do mesmo Estatuto estabelece que, "em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima". Portanto, os limites do art. 928 do CC não precisam ser observados se a responsabilidade civil advém de ato infracional com reflexo patrimonial. Poderia, nesse sentido, haver uma espécie de solidariedade entre o causador do dano e os seus pais. Normalmente, os atos infracionais que caracterizam bullying são lesões corporais, injúria, difamação, racismo etc.

7) De qualquer forma, os artigos acima referidos, mais o art. 186 do Código Civil, que dispõe sobre a responsabilidade civil subjetiva, merecem destaque na apreciação do tema objeto deste texto. O bullying é atitude covarde praticada, como se disse, normalmente por menores. Geralmente, o agressor não age só.

Os pais dos agressores podem ser responsabilizados. A escola também, assim como o próprio menor, nos termos examinados. A lei, ao impor a responsabilidade objetiva dos indiretamente responsáveis e a ao estabelecer a solidariedade entre as pessoas designadas no art. 932 do CC, quer deixar a vítima em posição confortável para ter os danos que a atingem efetivamente reparados, sejam os de natureza material, sejam os de ordem estritamente moral.

8) A responsabilidade das escolas e demais estabelecimentos de ensino é incontestável. Quando os pais deixam seus filhos na escola, não têm mais sobre eles o comando enquanto lá permanecem. Os pais são proibidos de permanecer dentro do ambiente escolar. E não deve ser diferente. Logo, a escola tem o dever de manutenção da ordem e da integridade (física e psíquica) de seus alunos. Comprovado o bullying, não se abre à escola a oportunidade de provar a sua falta de culpa. A responsabilidade é objetiva. Nesse sentido já decidiu, acertadamente, a Décima Terceira Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em março de 2011 (clique aqui).

9) Os pais, repita-se, também são responsáveis pelos atos nocivos, dessa natureza, causados por seus filhos menores. A difícil questão é a de saber se a responsabilidade dos pais coexiste com a da escola. Conforme examinado, os pais são responsáveis pelos filhos que estão "sob sua autoridade e em sua companhia". Há controvérsia na doutrina sobre a interpretação mais adequada para a expressão "autoridade e companhia". Segundo alguns autores, a coabitação seria o elemento para atender ao reclamo legal. Segundo outros, a delegação de vigilância com caráter de substituição seria suficiente para excluir a responsabilidade dos pais por faltar a tal "companhia". Entretanto, parece-nos que a vagueza do texto legal é sábia e o exame do caso concreto deve definir se a responsabilidade dos pais coexiste com a da escola nos casos de bullying praticado dentro do ambiente escolar. Muitas vezes, apesar de o agressor não estar na companhia de seus pais, os seus atos na escola decorrem de sua personalidade e educação (falta de). Por isso, em princípio, a vítima deve estar em condição confortável, podendo ajuizar ação contra a escola, contra os pais ou contra todos os responsáveis.

10) Nesse mesmo sentido, deve ser examinado o caso concreto para saber se a responsabilidade é de ambos os pais ou de apenas um deles. Clito Fornaciari Júnior, em recente artigo publicado no jornal Tribuna do Direito (nº 196, de agosto de 2011), intitulado "Responsabilidade por ilícito praticado por menor" analisa com propriedade o assunto. Segundo ele, alguns atos praticados pelo filho decorrem de atitude atribuível a somente um dos pais; outros não.

11) Os danos, por sua vez, podem ser patrimoniais e morais. Constituem danos patrimoniais todas as despesas feitas com médicos, tratamentos, terapias, remédios, entre outros. Os danos morais são ainda mais evidentes porque a violência no bullying traz sofrimento à vítima, dor e constrangimento.

12) Mais recentemente, o bullying tem sido feito por meio das redes sociais de relacionamento. Tal atitude é denominada de cyberbullying, palavra acrescentada na última edição do dicionário Oxford, que quer dizer a mesma coisa que bullying, porém, praticado virtualmente, ou seja, por meio da internet. Em face da disseminação mundial dessas redes de relacionamento e da significativa e surpreendente adesão dos brasileiros, o cyberbullying tem sido cada vez mais comum e danoso. É importante ressaltar que, nos casos de cyberbullying, a responsabilidade dos pais é patente, pois os acessos aos computadores por meio dos quais é praticada a violência virtual são feitos normalmente de dentro do próprio lar. E mesmo que não o fossem, os pais têm o dever de controlar seus filhos e educá-los a fim de evitar comportamentos danosos, como esse tipo de agressão e intimidação.

13) Ainda com relação ao cyberbullying, discute-se se haveria responsabilidade dos meios de comunicação utilizados para a propagação da ofensa, como sites, redes sociais, provedores etc. A lei não disciplina o assunto e as decisões têm variado bastante. Recentemente, conforme noticiado no Migalhas (clique aqui), semana passada, foi apresentado ao Congresso Nacional o projeto de lei denominado Marco Civil da Internet que prevê como princípio a "neutralidade da rede". De acordo com a proposta original, a ideia é a de excluir a responsabilidade dos provedores por postagens enviadas por terceiros. Assim, não haveria necessidade de controle prévio do conteúdo, respeitando a liberdade de expressão e a "natureza colaborativa da internet". Somente haveria responsabilidade em caso de descumprimento de ordem judicial determinando a eliminação do material postado.

14) O fato é que o problema do bullying, presencial ou digital, existente no mundo inteiro, precisa ser rigidamente combatido. É necessário que se dê a devida importância ao assunto, por pais, professores, diretores de escola, sociedade, Estado etc. Há algumas leis estaduais que procuram combater a prática, bem como diversos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional sobre o assunto. Mas sem que seja dado o devido valor por todos aqueles que consideram o bullying como um processo natural e até saudável, ou reles brincadeiras de crianças, a tarefa será inglória. Espera-se que a conscientização da sociedade seja alcançada no menor tempo possível e que as questões técnicas sobre responsabilidade civil em casos como esses sejam esparsos e fiquem apenas para a história.