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Adoção intuitu personae de crianças e adolescentes: Informalidade vs melhor interesse

sexta-feira, 28 de março de 2025

Atualizado em 31 de março de 2025 08:06

1. Introdução

Neste artigo, trataremos da adoção intuitu personae, adoção dirigida ou adoção direta.

Embora ela seja nula, o fato é que seu feito prático (o vínculo jurídico de filiação) é mantido por outro fundamento em muitas situações. Trata-se de aplicação da substituição do fundamento de ato de vontade, uma das formas de aplicação do princípio da conservação do ato jurídico1. 

2. Cabimento 

A adoção intuitu personae, adoção dirigida ou adoção direta dá-se quando os adotantes são escolhidos diretamente pelos anteriores pais, sem respeitar a fila do cadastro de adoção. É dita "adoção intuitu personae", porque os adotantes são escolhidos diretamente pelos pais. Lembra-se que, em regra, a adoção intuitu personae é vedada, porque é preciso seguir a ordem do cadastro de adoção (art. 50, ECA).

Quando ocorre fora dos casos legais, ela também é chamada de "adoção à brasileira", porque envolve um "jeitinho" de burlar as regras formais de adoção. Adoção à brasileira é um ato ilegal de alguém que, mentindo, reconhece um filho alheio com a prática dos pertinentes atos registrais. Cuida-se de informalidade destinada a contornar as "burocracias" próprias do procedimento legal de adoção. 

Há, porém, hipóteses legais de dispensa de observância da fila do cadastro de adoção, hipóteses essas que se costuma chamar apenas de adoção intuitu personae ou dirigida, e não de "adoção à brasileira" por conta da ideia de irregularidade própria desta última.

As principais hipóteses legais estão § 13 do art. 50 do ECA2, que dispensa o cadastro de adoção em alguns casos.

Outra hipótese legal é na adoção internacional quando o Brasil será o país de destino da criança estrangeira a ser adotada e quando o procedimento de adoção tiver de ocorrer no Brasil, conforme art. 52-D do ECA3.

A doutrina e a jurisprudência também tendem a admitir a adoção intuitu personae quando, no caso concreto, isso se revelar compatível com o melhor interesse da criança. A ideia é a de que a ordem do cadastro de adoção não é absoluta. Trata-se, porém, de situações excepcionalíssimas. Geralmente os casos concretos que se encaixam em um dos seguintes grupos: (1) de adoções unilaterais informal, sem formalização judicial; ou (2) os de adoções intuitu personae acompanhada de longo tempo de convivência da criança com os adotantes. Esses dois casos são, inicialmente, irregulares; são adoções à brasileira. Todavia, por conta do contexto, podem vir a ser tolerados juridicamente.

Em relação à primeira hipótese (adoções unilaterais informal), é comum a adoção à brasileira em situações em situação de mães solteiras que conhecem um novo amor. Esse novo amor, em muitas hipóteses, declara falsamente ser o pai biológico e obtém o registro civil. A rigor, trata-se de ato que configura crime (art. 242, Código Penal4). Lembramos que estamos a tratar da adoção unilateral informal. É que a adoção unilateral formal é plenamente lícita, ocorrida mediante decisão judicial.

Em relação à segunda hipótese, essa prática acontece fora do contexto de novos relacionamentos. É o caso de uma mãe gestante que, logo após o parto, entrega o filho para os "adotantes". 

Nesses casos, o "pai adotante" mente ao Cartório, registra o filho como próprio e assume, de fato, a guarda da criança com sua esposa.

Essa esposa (pretensa "mãe adotante") nem sempre consegue o registro, pois a gestante acaba figurando no registro pelo fato de a Declaração de Nascido Vivo ser expedida pela maternidade indicando-a como a parturiente, o que é levado em conta no Cartório.

Essa situação de irregularidade costuma persistir até que, anos depois, o casal adotante tenta alguma forma de inserir a "mãe adotante" no registro público e eventualmente retirar o nome da mãe biológica do registro.

Em princípio, os dois tipos de adoções à brasileira acima são nulos.

Todavia, caso, após esse ato, seja verificada a formação de um vínculo socioafetivo de filiação, o registro público pode vir a ser mantido incólume por esse outro fundamento (substituição do fundamento de ato de vontade5). A filiação é mantida não por conta do ato ilícito, e sim por causa da socioafetividade e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Em casos de adoções unilaterais informais (ex.: padrasto registrado como pai), a jurisprudência tende a negar que o pai adotivo tente anular posteriormente o registro (o que costuma ser feito quando ele vem a divorciar-se da mãe biológica e pretende esquivar-se de pagar pensão alimentícia ao filho). Um dos principais argumentos é o de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza.

Em outros casos de adoções intuitu personae (ex.: entrega da criança a um casal), a jurisprudência tende a tolerar a manter a situação se já tiver sido consolidada no tempo. Afinal de contas, os danos seriam muito maiores para a criança, se esta fosse retirada do seio da família adotiva para ser submetida à fila do cadastro de adoção e ficar em acolhimento institucional ("abrigos"). O princípio do melhor interesse da criança prevalece no caso concreto. Veja, por exemplo, estes julgados: 

CIVIL. HABEAS CORPUS. FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA DE MENOR. POSSÍVEL ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. WRIT UTILIZADO COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES. EXAME DA POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇA DE TENRA IDADE EM VIRTUDE DE BURLA AO CADASTRO DO SISTEMA NACIONAL DE ADOÇÃO E DE INOBSERVÂNCIA DO RITO DE ADOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA DO INFANTE SOB OS CUIDADOS DA FAMÍLIA ACOLHEDORA HÁ MAIS DE 1 (UM) ANO E 7 (SETE) MESES. CADASTRO DE ADOTANTES DEVE SER SOPESADO COM O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. FORMAÇÃO DE SUFICIENTE VÍNCULO AFETIVO ENTRE O INFANTE E A FAMÍLIA SUBSTITUTA. PRIMAZIA DO ACOLHIMENTO FAMILIAR EM DETRIMENTO DA COLOCAÇÃO EM ABRIGO INSTITUCIONAL. PRECEDENTES DO STJ. ILEGALIDADE DO ACÓRDÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA DE OFÍCIO, EXCEPCIONALMENTE, CONFIRMANDO A LIMINAR JÁ DEFERIDA.

1. Não é admissível a utilização de habeas corpus como sucedâneo ou substitutivo do cabível recurso ordinário. Possibilidade excepcional de concessão da ordem de ofício. Precedentes.

2. Por expressa previsão constitucional e infraconstitucional, as crianças e os adolescentes têm o direito de ver assegurado pelo Estado e pela sociedade o atendimento prioritário do seu melhor interesse e garantida suas proteções integrais, devendo tais premissas orientar o seu aplicador, principalmente, nas situações que envolvam abrigamento institucional.

3. A jurisprudência desta Eg. Corte Superior, em observância a tal princípio, consolidou-se no sentido da primazia do acolhimento familiar em detrimento da colocação de menor em abrigo institucional, salvo quando houver evidente risco concreto à sua integridade física e psíquica, de modo a se preservar os laços afetivos eventualmente configurados com a família substituta.

Precedentes.

4. A ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, devendo ceder ao lema do melhor interesse da criança ou do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar (HC nº 468.691/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, DJe de 11/3/2019).

5. Ordem de habeas corpus, excepcionalmente, concedida de ofício, confirmando a liminar já deferida.

(HC n. 878.386/ES, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 2/4/2024, DJe de 11/4/2024.) 

HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA). MEDIDA DE PROTEÇÃO. BUSCA E APREENSÃO DE MENOR. SUSPEITA DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. ENTREGA DA CRIANÇA PELA MÃE AOS PAIS REGISTRAIS DESDE O NASCIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". MEDIDA PROTETIVA EXCEPCIONAL. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. OFENSA AO MELHOR INTERESSE DO MENOR. ORDEM CONCEDIDA.

1. É pacífico o entendimento desta Corte no sentido de permitir, em situações excepcionais, a superação do óbice da Súmula 691 do STF em casos de flagrante ilegalidade ou quando indispensável para garantir a efetividade da prestação jurisdicional.

2. O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, ao preconizar a doutrina da proteção integral e prioritária do menor, torna imperativa a observância do melhor interesse da criança.

3. Esta Corte Superior tem entendimento assente de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional em detrimento do familiar.

4. Nessa senda, o afastamento da medida protetiva de busca e apreensão atende ao princípio do melhor interesse da criança, porquanto, neste momento, o maior benefício à menor é mantê-la com os pais registrais, até ulterior julgamento definitivo da ação principal.

5. Ordem de habeas corpus concedida, com liminar confirmada.

(HC n. 597.554/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 2/12/20206) 

HABEAS CORPUS. LIMINAR. MENOR. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E MEDIDA PROTETIVA. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. SUSPEITA DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. ENTREGA DA CRIANÇA PELA MÃE AO PAI REGISTRAL DESDE O NASCIMENTO. PATERNIDADE BIOLÓGICA AFASTADA. MENOR PORTADOR DE GRAVES PROBLEMAS DE SAÚDE. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

1. Esta Corte Superior tem entendimento assente de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional em detrimento daquele em família substituta. Precedentes.

2. Na hipótese, o afastamento liminar da determinação de acolhimento institucional aparenta melhor atender ao princípio da prevalência do interesse da criança, porquanto, neste momento, o estado de saúde do menor inspira cuidados e mantê-lo sob as atenções e desvelos personalizados e individualizados proporcionados pela família substituta se mostra preferível, ao menos até o julgamento definitivo da ação principal, diante da necessidade de acompanhamento médico constante, de duvidoso alcance na via institucional.

3. Medida liminar deferida.

(HC n. 683.962/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 18/8/2021.) 

A propósito, o STJ, apesar de reconhecer a ilegalidade da adoção à brasileira, entendeu que o Ministério Público (MP) não teria interesse processual para pleitear indenização por dano moral coletivo contra um casal que havia tentado realizar a adoção intuitu personae. Entendeu que o caminho de punir o casal com a indenização por dano moral coletivo não era útil processualmente, até porque a adoção intuitu personae, apesar de ser ilegal e de não dever ser incentivada, acaba sendo uma realidade social (STJ, REsp 2.126.256/SC, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe de 10/6/2024).

Consideramos incensurável a jurisprudência, porque, no final das contas, as regras de Direito da Criança e do Adolescente não é um fim em si mesmo. Elas servem aos mirins, e não o contrário. Portanto, se, no caso concreto, uma situação irregular vier a ser mais adequada ao bem-estar do pequeno, não há o que fazer senão curvar-se ao verdadeiro senhor do Direito da Criança e do Adolescente: o princípio do melhor interesse do mirim.

Deve-se, porém, evidentemente sempre evitar irregularidades e prestigiar a fila do cadastro de adoção. Mas, infelizmente, a informalidade é uma realidade contra a qual o Direito nem sempre consegue vitórias.

__________

1 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2025, p. 309.

2 Art. 50, § 13, ECA.  Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: 

I - se tratar de pedido de adoção unilateral; 

II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; 

III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. 

§ 14.  Nas hipóteses previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto nesta lei. 

3 Art. 52-D.  Nas adoções internacionais, quando o Brasil for o país de acolhida e a adoção não tenha sido deferida no país de origem porque a sua legislação a delega ao país de acolhida, ou, ainda, na hipótese de, mesmo com decisão, a criança ou o adolescente ser oriundo de país que não tenha aderido à Convenção referida, o processo de adoção seguirá as regras da adoção nacional. 

4 Parto suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido

Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981)

Pena - reclusão, de dois a seis anos. (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981)

Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza: (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981)

Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena. (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981)

5 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2025, p. 309.

6 Segue excerto do voto do relator detalhando o caso concreto:

Na hipótese, noticiam os autos que a menor J V O N é uma bebê de origem paraguaia, que foi acompanhada desde a gestação pelo casal J.O. e R.N.S. e entregue a eles pela sua mãe biológica logo após seu nascimento, os quais registraram-na como filha ainda no consulado brasileiro, em Salto Del Guairá - Paraguai (fls. 53-54), e ratificaram o registro no Brasil (fl. 181). O Ministério Público do Estado do Paraná ajuizou medida protetiva e busca e apreensão, alegando que, em razão de denúncia anônima de suposta adoção irregular por parte de "um casal habilitado para adoção", apuraram-se indícios fortes de adoção irregular da criança, também pelo fato de que o referido casal já estava em processo de adoção naquela comarca. O Juízo natural determinou o acolhimento da criança em Casa-Abrigo. Impetrado writ perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a liminar foi indeferida pela d. Relatora (...) Ante o cumprimento da ordem de busca e apreensão da criança e o acolhimento em abrigo, foi impetrado o presente habeas corpus, com pedido de liminar, sustentando o impetrante a ilegalidade e a impertinência da medida extrema determinada initio litis. A liminar foi deferida pelo em. Ministro Presidente do STJ, que, prestigiando o princípio do melhor interesse da criança, determinou a "imediata entrega da menor J. V. O. N. aos pais registrais, J. O. e R. N. S., afastando, por ora, o recolhimento institucional até o julgamento final do presente habeas corpus". (...) Ante o exposto, concede-se a ordem de habeas corpus para, confirmando a liminar deferida às fls. 1.305-1.310, determinar que a paciente J. V. O. N. permaneça na guarda e responsabilidade dos seus pais registrais, até o julgamento definitivo da ação de anulação de registro civil de nascimento aviada pelo Ministério Público estadual.