"Sonho meu,
sonho meu,
vá buscar quem mora longe,
sonho meu."
D. Ivone Lara
Carl Jung conta-nos que, na África, encontrou uma tribo cujos componentes negavam que sonhassem. Com sua habilidade, ele entrevistou membros dessa tribo e descobriu que isso não era verdade. O que ocorria era que apenas o cacique e o feiticeiro da tribo estavam autorizados a sonhar, pois, nos sonhos, eles recebiam mensagens sobre o melhor modo de administrarem a tribo. Aos demais membros da comunidade não cabia esse privilégio. Há pessoas civilizadas que têm medo semelhante dos seus sonhos.
Pode-se dizer que foi graças a Sigmund Freud que os sonhos adquiriram real importância, ao serem considerados um instrumento pelo qual a pessoa procura transmitir a si mesma alguma mensagem, no geral uma mensagem cifrada. Muito embora o sonho seja elaborado pelo sonhador, ele muitas vezes utiliza nisso elementos que não estão no lado consciente da nossa mente. Por outro lado, não temos como conhecer o conteúdo do lado inconsciente da mente, até porque, quando isso acontece, deixamos de falar de algo inconsciente para falarmos de algo de que agora temos consciência. De certa forma, o trabalho do psicoterapeuta consiste principalmente em auxiliar o paciente a decifrar aquela mensagem cifrada, trazendo-a do obscuro campo da inconsciência para o da consciência. Tarefa das mais difíceis, como reconheceu Jung já no fim da vida. "Nenhum símbolo onírico pode ser separado da pessoa que sonhou, assim como não existem interpretações definitivas e específicas para qualquer sonho" escreveu ele em seu derradeiro trabalho.
Nos nossos sonhos aparecem principalmente elementos simbólicos, que Freud denominava "resíduos arcaicos", o que poderia sugerir que estamos diante de material imprestável, como o que se joga na lata de lixo. Justamente por isso, Jung preferiu falar em "arquétipos", pois, embora aceitasse que esse material fosse, muitas vezes, arcaico, entendia que seu conteúdo apresenta atualidade e é extremamente útil para o autoconhecimento do sonhador, desde que devidamente interpretado.
Façamos uma comparação. Nosso físico apresenta "resíduos arcaicos", como os dedos do pé, ou artelhos. Tais órgãos atualmente não têm utilidade alguma para o ser humano, ao contrário do que ocorre com os pés dos demais primatas, que deles ainda se utilizam para apreender objetos ou agarrar-se em galhos. Depois que o nosso "tetetetravô" resolveu descer da árvore, esses órgãos, por perderem a utilidade, foram-se atrofiando. A necessidade cria o órgão, mas a sua inutilidade acaba por atrofiá-lo. O mesmo ocorre com nossas unhas que não mais utilizamos para cavar, como ainda fazem outros animais. Resultado, tirantes os violeiros, que encontram nelas alguma utilidade, e os motoristas de caminhão, que utilizam a unha do mindinho para coçar o ouvido, quem mais precisa delas? O mesmo podemos dizer dos mamilos dos primatas machos.
Meu pai brincava, dizendo que se Deus fosse perfeito, homem não nascia com tetas. Ocorre que, quando o feto se vai formando, ainda não há uma definição do gênero a que pertencerá a criatura que se está desenvolvendo. Isso só ocorre quando o elemento X ou Y do cromossoma vier a determinar quais os hormônios que aquele organismo deverá produzir para que ali tenhamos um homem ou uma mulher. Os mamilos do homem, portanto, são esboços de seios, que não se formaram por falta de estímulo hormonal. De certa forma, um "resíduo arcaico".
Nossa mente é bem maior do que nosso cérebro. Enquanto o cérebro se vai formando a partir do encontro entre o espermatozóide e o óvulo, a mente já está programada em nosso DNA.
A formiga e a abelha, ao nascerem, já trazem no cérebro o sentido de organização, que não adquirem "culturalmente", como os humanos. Isso lhes é transmitido desde tempos imemoriais, passando de geração a geração. O mesmo ocorre com as aves que já nascem sabendo voar ou sabendo nadar. Essa capacidade é, de certa forma, anterior a sua formação.
Ora, se isso ocorre com insetos e aves, por que o nosso cérebro somente conteria aquilo que a cultura nos ensina? Quando ele incorpora a mente, esta traz consigo um estoque de informações que estavam, ao que tudo indica, armazenados, em estado de latência, no DNA, tanto quanto as informações que determinarão o formato do nosso rosto, a cor dos nossos cabelos e dos nossos olhos. O problema é que muitos desses símbolos arquetípicos já nada significam para o homem moderno, como é óbvio, donde a ininteligibilidade aparente de muitos de nossos sonhos.
Muito embora seja "uma tolice acreditar-se em guias pré-fabricados e sistematizados para a interpretação dos sonhos", como diz mestre Jung, reconhece ele que, independentemente de condição cultural ou localização geográfica, alguns elementos são comuns às narrativas oníricas, como a "queda" ou o sonhador se encontrar no meio da multidão sem roupa ou com trajes inadequados.
Sou testemunha disso. Quando jovem, eu sonhava freqüentemente que estava rolando em um telhado ou à beira de um precipício. Antes de esborrachar-me lá embaixo, eu acordava muito assustado. Meus pais, tão assustados quanto eu, levaram-me a um médico, que nos tranqüilizou: aquilo era coisa comum em crianças em fase de crescimento. A relação entre uma coisa e outra, porém, jamais me foi explicada.
Estar andando no centro da cidade inteiramente nu ou sem sapatos, não produzindo qualquer reação nos passantes, é outro dos meus sonhos recorrentes. Há variações, que até hoje me ocorrem, especialmente quando estou diante de um novo projeto. Nelas, eu entro na sala de aula e descubro que deixei em casa o caderno com a lição de casa. Ou sonho que estou sendo convocado para voltar à Faculdade para fazer exame relativo a determinada matéria que descobriram que eu não havia feito. Geralmente no próprio sonho eu me indigno, dizendo que já sou um profissional bem sucedido e aquilo é um absurdo. A relação entre isso tudo (o meu parcial despreparo) e minha preocupação com o novo projeto (será que eu consigo?) é evidente.
Em seu A Interpretação dos Sonhos, mestre Freud diz textualmente que "todos aqueles que fizeram exames para universidades foram perseguidos por este mesmo pesadelo: iam ser reprovados, teriam que repetir o ano etc. Para os que fizeram provas de estudos superiores, este sonho típico é substituído por um outro: vão ter de fazer de novo um concurso difícil e objetam inutilmente, dentro do sonho, que já são há anos médicos, professores ou servidores públicos". Como é agradável sabermos que somos normais até mesmo em nossas esquisitices!
Aliás, meu neto mais velho, em vias de mudar de colégio, acaba de me informar que teve o tal sonho que o exibia sem roupa em público. Demos muita risada quando eu lhe contei que esse sonho é meu velho companheiro.
Jung registra que não apenas nos sonhos podem aparecer os tais símbolos, mas também em nossa vida desperta. Também aí tenho algo a dizer. Certa ocasião, eu participava de um congresso de juristas, em outro Estado, sendo eu um dos mais moços dos participantes. Fui escolhido para fazer o discurso de encerramento do congresso, o que me apavorou, pois eu não tinha ali o apoio dos meus livros nem estava no meu natural ambiente de trabalho. Após o jantar, esbocei o tal discurso e fui deitar. No dia seguinte eu não conseguia sair da cama, reação que faria qualquer psicólogo rir muito, pois é a construção inconsciente de um álibi: eu bem que gostaria de ir, mas esta repentina paralisia não me deixa. Meu amigo Cezar Peluso, informado do fato, veio ao meu quarto e me deu um tratamento digno do célebre analista de Bagé, à base do joelhaço.
Enquanto ele despejava aquele monte de desaforos, uma pomba assentou-se no parapeito da janela, olhou-me fixamente, rodou nos calcanhares, se é que pomba tem calcanhar, e voou para o além. Imediatamente eu saltei da cama, redigi o tal discurso, que foi apresentado à noite e mereceu aplausos generosos dos presentes, alguns dos quais até hoje se lembram desta ou daquela frase. Está aí o Sérgio Couto que não me deixa mentir.
Jung certamente vibraria com essa narrativa, pois a pomba é um símbolo caro aos cristãos, representando o Espírito de Deus, que, dentre outros atributos, seria a origem de nossas inspirações e de nossa fortaleza.