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Viagem (Uma)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Atualizado às 07:30

Naquela época eu trabalhava no interior do Estado. Viagem de trem, cansativa ao extremo. Lecionava lá. Professor primário. Por concurso, diga-se. Agradava-me sobremaneira o magistério, posto que como sói ocorrer hodiernamente, um tanto mal remunerado. Como sempre, aliás. Gasta-se mais com Forças Armadas do que com escolas, dizia um colega, desanimado. E o magistério era ainda mais desgastante porque minha mulher recusava-se a acompanhar-me, não queria morar no interior. Gente de roça. Gentinha. Era a expressão desprimorosa com que minha consorte se referia a meus alunos e colegas. Coisa de moça mimada, compreende o senhor? Neta de nobres arruinados, como poderia entender a simplicidade daquela gente humilde e sincera. Como ter olhos para ver por trás daqueles rostos encarquilhados e curtidos pelo sol a bondade e a disponibilidade daquela gente despretensiosa? Difícil, em verdade.

Em uma dessas viagens, de ordinário demoradas e extremamente cansativas, ocorreram fatos invulgares, deveras estranhos, que eu não me atrevo a contar a qualquer pessoa. Conto-lhe porque estamos sós e eu não me arreceio de que me tome por, como direi?, mitômano. Explicação para aquele insólito acontecimento jamais tive. Alucinação? Talvez. Refiro-me ao cansaço da viajem. Tantas horas ali sentado no vagão, após uma semana de trabalho exaustivo. Talvez a tensão acumulada. Fim de ano. Alunos suplicando notas. Provas a serem corrigidas. Pelo amor de Deus, preciso de 4,5 para não ficar reprovado, escreviam alguns alunos na prova. Aquela fantasia (ou que nome se lhe dê) quiçá fosse uma tentativa de alienação, de fuga de um modo de ser sempre igual, rotineiro. O fato é que hoje não logrei interpretação razoável para aquilo, que me parece, no recôndito da memória, um acontecimento real.

Nem comentei com a Rita. Ela não me entenderia. Ou me julgaria mal, o que é mais certo. Você precisa de umas férias, como costumava ela dizer, quando queria encerrar algum assunto que não lhe trazia interesse. Não é que vivêssemos mal. Ao contrário. Dávamo-nos às mil maravilhas, como se diz vulgarmente. Eu passando a semana inteira no interior e ela cá na cidade, com sua roda de amigos, suas rodas de buraco, seus chás beneficientes. Cansei-me de corrigir os convites: beneficente, do latim beneficentia. Pois os convites eram sempre impressos com aquele maldito i excedente que tanto me irritava. Então os chás eram beneficientes, misto de entidades assistidas e embolsamento de oitenta por cento de lucro líquido. Era efetivamente uma eficiência e tanto. Não era à toa que se viam tantas festas beneficientes, como azedamente constatava (o galicismo é dele, não meu) o marido de uma delas.

Pois o vagão em que nos encontrávamos, eu e aquela mole humana, não trazia, daquela vez, os bancos distribuídos como ordinariamente ocorre. Não. Todos os bancos estavam com as costas contra as paredes do vagão. Isto é, as pessoas não se sentavam dando as costas às de trás. Não havia "as de trás", já que todas estávamos de frente para as pessoas sentadas do outro lado do vagão encostadas na parede oposta. Todas as pessoas sentadas lado a lado, em toda a volta do vagão, volvidas para o centro dele. Algo inusitado, de feito.

Era, deveras, uma posição estranha, que nos obrigava a encarar as outras pessoas. Pessoas que, de modo geral, não conhecíamos. Aqueles rostos à nossa frente, olhando-nos e sendo olhados. Examinando-nos e sendo examinados. Os gestos contidos, como que paralisados pelo olhar em frente. Uma situação incrível. Como o trem balouçava (e como balouçava!), não deixava de ser divertido ver as pessoas, como um todo, sendo jogadas para lá e para cá, naquele fluxo e refluxo de maré humana, sem terem condições de impedir o movimento compulsivo.

Por vezes alguém procurava um jeito de olhar lá fora, além da janela, talvez para evitar a cena que se passava ali dentro. Talvez para encontrar a própria identidade. Ou para evitar os olhos de quem estava à sua frente. Ou pela dificuldade de olhar as pessoas nos olhos.

Quando o trem parava ou dava partida, saindo de alguma estação, a situação quedava algo ridícula. Na partida, as pessoas que viajavam de costas para o local de destino (isto é, de costas para a locomotiva) eram arrancadas do lugar e arremetidas para diante. Algumas, mais distraídas, ou que ainda não haviam atentado para isso, vinham parar no meio do vagão, expostas ao julgamento das demais. Procuravam, em tal ocasião, equilibrar-se e adaptar-se às contingências, para não colidir com as pessoas sentadas à sua frente, lá adiante, no fim do vagão. Em vista do inesperado, a solução era rir, um riso meio sem graça, tratando de retornar rápido ao lugar vago, misturando-se com os demais passageiros.

Quando o trem estancava de súbito, as pessoas de lá é que vinham para o meio do vagão, repetindo o riso, como a pedir desculpas pelo susto que haviam provocado nas demais. As pessoas que viajavam sentadas ao longo do vagão caíam umas sobre as outras. Ora daqui para lá, ora de lá para cá, conforme o trem tivesse partindo ou chegando, acelerando ou frenando. As pessoas que suportavam o peso daquele amontoado humano olhavam para as outras com ar sério, grave, como a repreendê-las pela brincadeira involuntária, ao mesmo tempo em que ajeitavam a roupa, imaginariamente amassada pelo incidente. Logo mais, porém, eram elas que estavam caindo sobre aquelas outras, que, por sua vez, restituíram a carranca, como num ritual, esquecendo o passado recente.

Havia crianças no trem. Havia senhores e havia senhoras. Uma velhinha, impávida, a folhas tantas retirou de um cesto de vime uma bola feita com linhas de lã, duas agulhas de madeira grossas e começou a tricotar. A essa altura, as pessoas parece que já havíamo-nos acostumado com os solavancos, avançados e recuos. Instintivamente dávamos um contragolpe no momento azado, neutralizado assim o efeito produzido pelo balouçar do vagão.

Em um desses solavancos, contudo, a bola de lã da veneranda senhora caiu ao solo e rolou para o meio do vagão. Um garoto, aí dos seus seis ou sete anos, levantou-se e foi ao encontro da bola. Quando pensávamos que ele iria restituir a bola à vovozinha, eis que o guri se põe a impulsioná-la com o pé, levantando-a ora com o direito ora com o esquerdo, sem deixá-la cair. Fazendo embaixada, como se diz na gíria futebolística. Os adultos (a velhinha inclusa) acharam graça naquilo. E o garoto sentiu-se incentivado, prosseguindo no seu malabarismo.

Um casal de mulatos trazia um filho, de idade equivalente à do "embaixador". O pai cotovelou o mulatinho, provocativamente, apontando o loirinho da embaixada com um golpe de sobrancelhas. O pelezinho - relevem-me o símile - entendeu a mensagem e adentrou o campo, com disposição, ovacionado pelo sorriso paterno. Tomou, com os pés, a bola do loirinho e passou a manobrá-la com a cabeça. Uma, duas, cinco vezes. A esta altura as pessoas à volta cantavam alto o número de vezes que o menino conseguiu cabecear a bola sem deixá-la cair. Dezoito, dezenove. E o garoto mantendo a bola de lã no ar. Trinta e seis, trinta e sete.

A velhinha do tricô achava muita graça naquilo. Ria e batia com a mão na perna, balouçando o corpo ritmadamente, para a frente e para trás, interrompendo, por uns instantes, a blusa que já se insinuava do seu trabalho. Alguém quis interferir, para resgatar o novelo de lã, mas ela pediu-lhe que deixasse os pequenos brincar. Deles é o reino dos céus, lembrou-lhe, zombeteira.

Outros garotos, estimulados pelo precedente, vieram para o centro do vagão e a bola passou a ser chutada por eles também. Logo, formaram duas turmas, uma delas com os garotos tirando as camisas, para distinguirem-se dos da outra, todos encamisados. O fiscal do trem, que havia entrado no vagão para picotar as passagens, resolveu arbitrar a peleja. Tomou da bola e levou-a para o meio do vagão. Com ar sério, advertiu os jogadores quanto ao comportamento que deles esperava durante o desenrolar do jogo, a denominada refrega.

Começada a partida, surpreendentemente para mim, as pessoas mostravam-se mais desinteressadas pelo que estava ocorrendo. A velhinha voltou ao seu tricô (pois a bola estava presa por um fio à blusa que estava sendo formada), indiferente ao uso que estava sendo feito de sua matéria prima. Um e outro passageiro pegou no sono, aproveitando o embalo do trem.

Esse o meu caso.

Aquele tilinc-talenc, tilinc-talenc das rodas de ferro passando sobre as emendas dos trilhos, de tão cadenciado, atuava, de fato, como um suporífero. Adormeci. Quanto tempo? Não sei. Súbito aquele grito forte que me acordou. Goooool! Abri os olhos de um salto, assustado, e os garotos comemorando o tento marcado. O fiscal (ou, mais exatamente, o árbitro) levava a bola para o meio do campo. A partida iria recomeçar. A quanto está o jogo? O vizinho também não sabia. Havia adormecido como eu e acordara igualmente com aquele grito de comemoração.

Novos lances se sucederam até que adormeci novamente. Novo tento, novo grito e novo despertar assustado. Fui notando que, à medida que aqueles gols se sucediam o humor das pessoas parece que ia se degenerando. O despertar era seguido de uma carranca silenciosa, mas bastante significativa. A alegria alheia quase sempre nos incomoda muito, realmente. Verdade que, agora, dos jogadores que haviam começado o jogo poucos continuavam. O loirinho estava sentado em um canto, com a perna esquerda enfaixada e um ar muito cansado. Ali do seu descanso o guerreiro continuava a assistir ao corre-corre dos outros guris. Não vi ali o mulatinho nem seus pais. A bola de lã estava bem menor do que no começo da partida. Talvez a metade do tamanho original. Mas o jogo continuava.

Mais um cochilo e acordei de vez.

Uns dois ou três garotos ainda brincavam com o que restava da bola. Era um quase nada, que eles teimavam em chutar. A vovozinha já havia concluído quase toda a blusa. Era uma linda blusa azul, em dois tons: mais claro o tom uns dez centímetros de baixo para cima. À medida que subia, o tom escurecia, em um degradê. A gola era quase preta. Ela experimentava o presente no marido (ou aquele que parecia ser seu marido).

O tilinc-telenc continuava noite dentro. As pessoas iam descendo aqui e ali. As que se levantavam para descer lançavam um olhar às que ficavam, como se pretendessem despedir-se, dizer alguma coisa. Mas ficavam naquele olhar indeciso, a boca fechada, aguardando a iniciativa do outro. Que também ficava mirando como a querer dizer algo. Era um instante. Um segundo, talvez. Era como se a gente desejasse rever aquela pessoa, para comentar a estranha experiência, marcar um novo encontro, uma nova viagem, onde a participação fosse maior. Quem sabe da próxima vez.

Mas, ao mesmo tempo, era como se já soubéssemos que aquela experiência não se repetiria. O momento havia sido aquele. Bom ou mau, muito ou pouco, tinha passado. Quem dele não se aproveitou, paciência.
Quando o vagão ficou quase inteiramente vazio, entreguei-me de vez ao tilinc-telenc, tilinc-telenc, tilinc-telenc.

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1Do livro Cristo hoje, Editora Loyola (esgotado)