"O Supremo, por maioria de votos, rejeita denúncia contra Palocci."
Dos jornais
Quando seu porte ereto assomou a curul dessa insigne Corte, pareceu-me ver ali uma Têmis desvendada. Rosto impassível, expressão sempre séria, votos declamados sem a mais remota sombra de emoção, menos ainda de paixão. Dir-se-ia estar ali um cérebro que julga, enquanto um coração descansa.
De muitos advogados que tiveram o privilégio de ter o processo apreciado por Vossa Excelência, ouvi a mesma expressão: é nossa Margareth Thatcher, o que diz tudo.
Ainda outro dia, por dever profissional, topei com estas palavras escritas por Vossa Excelência: "A denúncia, apesar de sucinta, atende às exigências formais e materiais contidas no art° 41 do Código de Processo Penal, possibilitando o pleno exercício da ampla defesa. No presente caso, encontram-se presentes todos os pressupostos e condições de procedibilidade para o ajuizamento e prosseguimento da ação penal em face do recorrente, sendo certo que a sua efetiva participação nos delitos deverá ser analisada após a instrução criminal, por ocasião da sentença". Isso está dito no RHC 97.598/SC, relatado por Vossa Excelência, citando votos de seus ilustres colegas Celso de Mello e Cármen Lúcia.
Não apenas citou, na recentíssima sessão do dia 4 de Agosto último, sua eminente colega, de porte mais modesto mas de firmeza equiparável, como endossou-lhe às claras a dureza de argumentação: "A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o trancamento de ação penal só se verifica nos casos em que há prova evidente de justa causa, seja pela atipicidade do fato, seja pela absoluta carência de indício de autoria, ou por outra circunstância qualquer que conduza, com segurança, à conclusão firme da inviabilidade da ação penal."
Expressões como firmeza, prova evidente de justa causa, atipicidade, carência absoluta e segurança não necessitam de dicionário para serem entendidas. "Mudou o Natal ou mudei eu?" indagaria, se vivo fosse, o patrono de Migalhas.
Seria uma descabida grosseria alguém, a esta altura, recordar o justo sonho que recentemente sonhou Vossa Excelência que, consciente de seus jamais duvidados predicados intelectuais, fê-la ausentar-se vezes e vezes desse Augusto Sodalício para, com o estímulo e o carinho de seus ilustres colegas e com todo o empenho do Senhor Presidente da República e sua máquina administrativa incontrastável, buscar concretizá-lo, transformando Vossa Excelência, certamente, num Ruy ressuscitado, o que nos faria mais orgulhosos de havermos nascido neste solo, onde, graças à generosidade natural de nossa gente, os nomes quase impronunciáveis jamais foram nem serão empecilho para que seus portadores sejam respeitados pelo que são, tão brasileiros como as Marias e os Silvas. Naquela ocasião, sua justa decepção foi a decepção de todos aqueles que acreditamos na imprescindibilidade de juízes sérios, aquém e além de nossas fronteiras.
Dizia Pontes de Miranda que, se o intérprete não tiver um mínimo de boa vontade, nenhuma lei será do seu agrado. Transportando esse pensamento para o nosso decepcionante Poder Judiciário, escrevi já há algum tempo:
"Quando o desmando dos homens
te cobrir de cicatrizes,
pensando as dores, reflete:
ainda temos juízes!Autoridades corruptas,
tantos homens infelizes.
Não cede à desesperança:
ainda temos juízes!Legalistas, burocratas,
ou venais, quais meretrizes.
Maioria ou minoria ?
Ainda temos juízes!Tão moços, mal preparados,
agindo qual aprendizes.
Melhor isso do que nada:
ainda temos juízes !Ubi homo, ibi peccata.
Releva dele os deslizes.
Perfeição só cabe em Deus.
Ainda temos juizes !"
Confesso-lhe que esse poema é recitado por mim quase diariamente e, se estou certo, se-lo-ia, se o conhecessem, por muitos dos advogados sérios que não conseguem aceitar os descaminhos do nosso Judiciário, assim como quem reza um mantra que lhe tolde os sentidos por minutos ou por horas, quando a vida lhe parece algo insuportável.
Sabemos quase todos que os juízes existem, desde a Magna Carta, para diminuir a força do poder dos poderosos, qualquer seja a base desse poder. Não fosse isso e o juiz seria apenas mais um opressor, ocupe ele o posto que ocupar, intra ou extra muros.
Não estou aqui para julgar ninguém, mas se as lições que aprendi no manual de Direito Constitucional do professor José Celso de Mello Filho ainda valem alguma coisa, todos temos o direito de desabafar, como ora faço, expressando publicamente seu desencanto, especialmente diante da conduta de alguém que havia alçado, ao meu sentir, talvez ingenuamente, páramos inacessíveis aos comuns mortais. Desnecessariamente recordando a matriz desse sagrado princípio, "Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances."
Se toda pessoa tem o direito de recorrer às autoridades judiciárias para ver reparadas as ofensas reais ou temidas a seu status dignitais, tem também, diz-se ali, o direito à liberdade da palavra, fundamental a que as autoridades públicas pensem duas ou mais vezes antes de expor sua biografia à maledicência humana.
Como, aliás, acaba de fazer o ilustre constitucionalista acima citado, ao recusar-se, por razões públicas de foro íntimo, a participar do julgamento de uma figura pública com quem não tem, ao que se saiba, a mais remota intimidade, mas a quem tem o nome ligado por haver sido, sabe-se lá há quanto tempo, por ele nomeado Ministro de nossa Suprema Corte, que só tem engrandecido com sua postura e sua cultura.
Talvez tenha sido Mário Quintana, mestre da síntese, quem nos tenha advertido de que "viver é decepcionar-se". Graças a Vossa Excelência, tomei, uma vez mais, consciência de que ainda me falta muito para o descanso de que falava San Juan de La Cruz:
"Lloraré mi muerte ya
y lamentaré mi vida,
en tanto que detenida
por mis pecados está.
¡Oh mi Dios!, ¿cuándo será
cuándo yo diga de vero:
vivo ya porque no muero?"
Deus guarde Vossa Excelência.