Meu gorducho amigo Ítalo, aquele um que me deve, há mais de cinquenta anos, um trote acadêmico, que jamais me pagará, se continuar a engordar desse jeito, questionou minha afirmação no sentido de que já gorjeei com o Ministro Sydney Sanches por esses brasis afora. Segundo ele, eu desafino até quando espirro, afirmação que só é digna de desculpa se considerarmos que, como ex-integrante do Ministério Público, não teria o meu cordial desafeto compromisso algum com a verdade. Já Sua Excelência o Ministro, diz ele, nascido em Rincão e tendo sido jogador de futebol e escrevente em Araraquara, esse é mel de boa cepa. Esquece meu rotundo amigo, pelo jeito, que o ministro já se encontra no ócio com dignidade e que a primeira coisa que acontece quando um juiz se aposenta é crescer a grama que está na frente da porta da casa dele. Datas vênias a esta altura é desperdício.
De fato, conhecesse aquele distinto advogado araraquarense e criador de peixe no Mato Grosso a história de nossa tradicional e sempre amada academia do largo de S. Francisco, por força de cujo vestibular bem sucedido eu carreguei esse mesmo Ítalo, há muitos quilos atrás, nas costas escada rolante acima, no largo do Patriarca, e saberia que, na segunda metade dos anos 50, lá estava eu na fila aguardando ser submetido a um rigoroso teste, a ser executado pelo ínclito maestro Davi Reis, emérito fundador de corais e que, dentre outras qualidades, tinha um T.O.C. que consistia em puxar o tempo todo a manga da camisa esquerda para fora da manga idem do paletó. Pois me submergi a tão rigoroso teste, como diria o Vicente Mateus, tornando-me, sem a menor dúvida, o mais alto baixo que já passou pelo Coral do XI de Agosto. E, na qualidade de membro nato, prestei minha modesta colaboração em páginas memoráveis, como a execução da Ave Maria de Soma, que pouca gente conhece e que não canto aqui porque o espaço e a ocasião não permitem.
E lá íamos nós bajular o governador do Estado, dando uma récita natalina no Palácio dos Campos Elíseos (nem sempre, minha senhora, o governador do Estado precisou esconder-se nos matagais do Morumbi), recebidos pelo professor Carvalho Pinto, aquele mesmo cidadão que num futuro não muito distante dali se apresentaria com duas costelas quebradas, fruto de um estranho abraço que o renunciante presidente Jânio Quadros lhe teria desfechado quando o governador foi recebê-lo no aeroporto que o trouxe de Brasília, sem que ele justificasse cabalmente a tal renúncia, a confirmar seu dito preferido: "Fi-lo porque qui-lo".
E se isso for pouco, lembro ao insigne taquaritinguense de nascença que aquele mesmo Sydney, ao criar na Associação de Magistrados de São Paulo (e cuja logomarca atual foi criada por um conceituado artista plástico cuja modéstia o impede de identificar-se neste momento), como presidente de fato, uma boitezinha ("Onde estamos! Boate em clube de Juiz! Onde isso vai parar, meu Deus!" exclamou-se na ocasião), à qual demos o adequado nome de Repicão, em homenagem a uma estranha matemática que o Boris, não fosse ele Kauffman, acabara de inventar (contrariando as mais conhecidas leis de Newton e Einstein, o que fez para fins que justificavam os meios, como diria o Tomás de Aquino), boate essa onde se apresentavam notáveis ídolos da música brasileira, tal como Paulinho Nogueira, Sócrates (o jogador, claro) e suas louras espumantes, Celso Camargo (a recitar Vinícius), Nélson Cerqueira e seu violão, ale da Excelentíssima Senhora. Celso Limongi (cuja interpretação de Tiro ao Álvaro rivalizava com a execução célebre da mãe da Maria Rita) e o diretor social da mencionada entidade, que, vez ou outra, brindava os presentes com uma canja, pela qual jamais cobrei cachê. Quem duvidar, pergunte ao Milton Gordo, que, por sinal, está cada dia mais magro.
E não apenas ali se fazia notar a indiscutível vocação do presente escriba para o bel canto. Quando o promissor sambista Cipriano, que nos transportava de casa para o TACrim e vice-versa, nos confessou que, sob o nome artístico de Cipri, estava para gravar um disco (vinil, sim senhora, que ainda não havia essas facilidades de hoje), algum de nós resolveu reptá-lo: "Melhor do que essas músicas eu tenho em meu repertório". E eis o valente Cipri providenciando arranjo e gravando o belíssimo samba que leva por título Quarta-feira, algo de que o Paulo Vanzolini certamente muito se orgulharia de haver feito, mesmo achando ele que o Zeca Pagodinho é mais cantor do que o Caetano Veloso, a quem nunca perdoou por haver transformado Ronda no hino da cidade de São Paulo dando-lhe, claro, outro nome.
Pois o mencionado samba assim dizia lá pelas tantas: "Inda ontem passei por aqui/ era um rei, hoje simples gari/ de vassoura na mão, recolhendo a ilusão/ que sambando vivi". E foi graças a esse belíssimo samba, sobre cuja autoria prefiro silenciar, que o Cipri finalmente despontou para o anonimato.
E isso porque a sempre ressalvada modéstia me impede de recordar o dia em que, no hall do hotel Friendship, em Beijing (é assim que eles lá chamam a capital da China, aqueles ignorantes), onde se apresentavam dois guitarristas chineses que não tinham a menor idéia de onde ficava o Brasil, menos ainda que língua aqui se fala, nem jamais haviam ouvido falar em bossa nova, acabaram eles por acompanhar, entusiasmadíssimos, aquele mesmo ex-diretor social da Apamagis interpretando, senhoras e senhores, de Lennon e McCartney, "Yes-ter-day".
(Neste momento, se nosso ensaio produzir algum efeito, uma mocinha levantará, para os leitores, uma placa com o dizer "Aplausos", como ocorre nos estúdios da TV.)