Se eu tivesse vez e voz no assunto, não teria a menor dúvida: imporia ditatorialmente minha vontade. Nada de Jô Soares nem Chico Buarque. O nome a ser escolhido, diria eu do alto de minha prosopopéia, seria bem outro. Nada pessoal contra o Chico, de quem me tenho afirmado e confirmado ser uma das muitíssimas viúvas musicais. Nosso querido rapazinho de belos olhos verdes, o maior letrista que o país já produziu, deu pra envelhecer, tornar-se até avô, veja que disparate!, e resolveu fazer o caminho inverso daquele percorrido pelo amigo de seu pai. Em lugar de evoluir de literato para cantor popular, com direito a um copo de uísque em cada mão, ou a passar o dia inteiro dentro de uma banheira telefonando para meio-mundo, como fazia o Vinicius, não é que o rapaz resolve fazer o contrário? Não mais achados extraordinários como esta definição antológica: "saudade é o revés de um parto, saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu". O ex-futuro-arquiteto agora, duplamente balzaquiano na idade, quer sê-lo também na vida literária. Em lugar de caipirinha num bar do Leblon agora é um copo de kir num bistrô parisiense. Pode?
Fôssemos falar de sua junguiana anima, que, já no início da carreira, o fez compor "com açúcar, com afeto, fiz teu doce predileto, pra você parar em casa", que ele só gravaria muitíssimos anos depois, suspiraríamos, desanimados: "essa moça 'tá diferente!'" A verdade é que monsieur Holandá jamais mentiu sobre a atração que o Velho Mundo exercia sobre ele. "Tu ris, tu mens trop; tu pleures, tu meurs trop. Tu as le tropique dans le sang et sur la peau" reclamava ele languidamente em Joana Francesa, misturando a língua de ontem com a língua de hoje. Prenúncio do que nos aguardava.
Já o José Eugênio Soares é da mesma estirpe do Caetano Veloso. Ninguém em sã consciência irá negar o valor indiscutível deles, como artistas. Mas ambos, tão distintos fisicamente, têm em comum a mesma megalomania. Sugiro-lhe, caro leitor: quer enriquecer? Então compre qualquer um deles por aquilo que ele efetivamente vale no mercado e, depois, o revenda por aquilo que ele pensa que vale. Você ficará milionário!
Pois nenhum deles seria meu candidato à Academia Brasileira de Letras. Ligasse ele para essas coisas e eu faria lobby pelo Millôr Fernandes, este, sim, o brasileiro mais adequado a ocupar uma das cadeiras daquela casa que já recebeu até outro distinto velhinho, que, embora não seja escritor, tem uma qualidade rara entre os brasileiros de hoje: é amante dos livros. O Millôr, que nasceu Milton e já foi Emmanuel Vão Gôgo, deu à cultura brasileira tanto que muito Fernando Morais só está esperando o homem dar seu último suspiro (o que ele fará somente daqui a muitos anos) para biografá-lo. Em livro de vários tomos. Um para o "Dicionovário", outro para o "Ministério de perguntas cretinas", outro para suas "Composições Infantis" e mais não sei quantos para seus desenhos, que, fosse ele norte-americano, e estariam no New Yorker, a fazer sombra ao Saul Steinberg. Mas isso fica por conta do Fernando Morais.
É claro que eu poderia fazer lobby para mim mesmo. Bastaria uma dose diária do mesmo tônico que o Jô e o Caê tomam em silêncio e lá estaria eu percorrendo os corredores da Casa de Machado de Assis a mostrar a meus futuros colegas o respeitável currículo que ostento. Livros de contos? Tenho vários. De crônicas? De Poesia? Infantis? Em português ou em outra língua? Viktor var en meget kvikk og livlig gutt. Han var nærmere fem år gammel, og var beveget av en uforstoppelig nysgjerrighet, como eles iniciaram, na Noruega, um livro infantil chamado Doc Vik. "Quer que traduza?", perguntaria eu ao Paulo Coelho, vingando-me das prateleiras e mais prateleiras dos livros do homem que aparecem em todas as livrarias de Oslo.
Sabemos, aliás, todos os que escrevemos como é terrível esse momento de quererem publicar nossos livros em outro país. Imagine alguém pretendendo mostrar aos japoneses, amantes que são da bossa nova, algum trecho meu, em que, com a ironia que me compete, falo de coisas mundanas. Como seria isso dito na língua deles? E como eu poderia saber se o tradutor foi fiel às minhas idéias e a meus propósitos? Sei muito bem que tradutore, traditore, mas ser traído por algum samurai é morte na certa!
Não ocorra comigo o que aconteceu com um grupo de nipônicos, caso que lhes asseguro ser absolutamente verdadeiro. A multinacional empresa YKK (Yoshida Kogyo Kabushikikaisha) é universalmente conhecida também como fabricante de slide fastener, nosso popular zíper, que os cariocas chamam de fechecler (corruptela de fecho éclair). Pretendendo estabelecer-se no Brasil, contratou um escritório brasileiro para registrar seu produto no INPI. Como os japoneses fabricam slides, o tal escritório, que se dizia especializado, não teve a menor dúvida: incluiu o fabricante no setor de artigos fotográficos. Se duvidar, pergunte ao Jo Tatsumi.
Melhor eu continuar anônimo, ainda que, ao contrário do Millôr, eu seja um escritor com estilo. E sem modéstia.
Aliás, coleguinha nosso que foi esnobado por três vezes pelos imortais que já haviam recebido na Academia Brasileira de Letras grandes literatos como Getúlio Vargas, Lira Tavares, José Sarney e outros da mesma estirpe, definiu isso magistralmente, não se chamasse ele Mário Quintana: "Não é que eu seja modesto. É que eu sou muito orgulhoso para demonstrar minha vaidade".