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Maldade (A)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Atualizado em 4 de junho de 2009 15:32

 

Naqueles tempos nenhuma "dona de casa" deixava de sintonizar a Rádio São Paulo, onde as vozes do Odair Marzano (cujos olhos verdes se revezavam com o sorriso da Marlene ou da Emilinha Borba na capa da Revista do Rádio) e do Maurício de Oliveira arrebatavam corações. O Maurício, por sinal, foi nosso colega no largo de São Francisco. Turma de 60. Verdade que eu e o Botallo estávamos entre os mais novos, enquanto que o Maurício faria companhia ao Dante Nese (que já era médico naquela época) e ao Gladston Jafet (que só esperou a formatura para falecer) no outro lado do espectro, não fossem estes ainda mais velhos do que o radialista. Mas era ele o nosso (inclua-se aí o Ítalo Fucci, que até hoje me deve um trote acadêmico, pois jamais conseguiu, com sua pequena estatura e aquela barriga enorme, carregar-me no ombro tal como eu o havia carregado, descendo a escadaria rolante da galeria da praça do Patriarca. No sentido inverso ao do movimento normal dos degraus, é claro!) orientador, como um irmão mais velho, já pai de filhos, um dos quais hoje é jornalista. Justamente por sua experiência, o Maurício (que já era, desde sempre, casado com sua colega de microfone, a elegante Lenita Helena) jamais se envolveu diretamente nas coisas do Direito, preferindo, inteligentemente, embarafustar-se pelos corredores da Volkswagen, onde chegou a Diretor, com direito a aposentadoria paga em marcos alemães (ou euros, não sei bem), isso depois de discutir vezes sem conta com um metalúrgico barbudo e de língua presa que o tempo levou para muito longe dali.

A voz, porém, que me ficou grudada na memória não era a dos galãs das novelas ouvidas por minha mãe, enquanto lavava a cozinha. Era a de um locutor, cujo nome desconheço, e que nos assegurava, com toda gravidade: "ninguém sabe da maldade que habita o coração dos homens; mas o Sombra sabe!". Aquilo me causava arrepios, ao generalizar afirmação tão severa. Aliás, muitos anos depois descobri, decepcionado, que aquilo era tradução da apresentação de uma série norte-americana, apresentada nos anos 30 e 40, onde se dizia exatamente isso: "Who knows what evil lurks in the hearts of men? The Shadow knows!" Só não ficou claro na mente da criança quem seria essa misteriosa "sombra".

Durante anos meus psicoterapeutas (a Artemísia, por exemplo, sendo junguiana de carteirinha, atribuía à sombra muito mais feitos do que eu, crente na bondade humana, poderia imaginar que ela fosse capaz de realizar!) procuraram-me incutir que o dia em que eu me convencesse de que há muitas e relevantes diferenças entre um homem e um anjo eu estaria salvo. "Salvo" aí talvez quisesse dizer que eu não precisaria mais deixar o dízimo mensalmente nas mãos da secretária deles, como eu de fato fiz durante tantos anos.

Sobre o tema: os economistas norte-americanos discutem a moralidade do chamado wal-martismo (técnica de produção e venda que consiste em impor o preço ao fornecedor, com encomendas em larga escala, obrigando o fornecedor a reduzir drasticamente a remuneração paga aos seus empregados, dado o lucro a ser obtido pela quantidade de mercadoria encomendada; e que, no limite, aceita o emprego de estrangeiros em situação irregular no país, ao argumento de que não cabe ao empregador envolver-se em questões sociais, que devem ser encaradas exclusivamente pelo governo, que, para tanto, já lhes cobra impostos suficientes) e as possíveis conseqüências de sua adoção indiscriminada no mundo todo.

Ao mesmo tempo, o cinema nos traz de presente de Natal, graças ao DVD, esse "Coisas Belas e Sujas", de Stephen Frears, onde temos, ainda uma vez, como se vai tornando comum no cinema contemporâneo, uma discussão de fundo ético: o contra-ponto entre "ser humano" e "ser santo". Tanto assim, que, a folhas tantas, o personagem mais cínico do filme (um tipo realmente asqueroso, mas que nada tem de impossível) chega a exclamar ao resistente herói, que aceita violar seus princípios éticos: "Bem-vindo ao mundo dos seres humanos!" A significar que aproveitar-se da situação de fragilidade das pessoas para tirar proveito (pobre Gerson, que maldiz até hoje o mísero cachê que recebeu para batizar a lei do proveito a qualquer custo, num prosaico comercial de cigarros, cujo nome ninguém mais é capaz de recordar!) faz parte das relações humanas. E que a generosidade, a compaixão e o altruísmo estão banidos da sociedade humana. Será?

É que, se na sociedade capitalista tudo tem seu preço e tudo pode converter-se em mercadoria, por que não incluir nessa lista o corpo humano? Se a cirurgia plástica já se converteu em "escultura corporal" (o Código de Ética Médica até há pouco tempo não concordava com a realização de cirurgia para fins meramente estéticos, que lhe parecia mercantilização da medicina e da ars curandi, acabando por dobrar-se à realidade do pragmatismo) e se partes do corpo humano são utilizadas como chamariz de consumo e promoção (regiamente remunerada) de seus/suas titulares (certa ocasião estranhou-se que em certo filme o ator principal exibisse mais músculos do que ele efetivamente tem, esquecidos tais críticos de que existem books de partes do corpo de modelos, que são convocadas (as partes!) para suprir as deficiências físicas do ator ou da atriz, como ocorreu com a magrinha Júlia Roberts no badalado "Uma Linda Mulher", que a projetou, ou com Janet Leigh, na celebérrima cena do chuveiro, no hitchcockiano "Psicose", pois, quando a cena foi filmada em Hollywood, utilizando-se uma "dublê de corpo", aquela atriz estava em Nova York, a passeio), a venda (e, como não pode deixar de ocorrer, o tráfico) de órgãos humanos será apenas um desdobramento do mesmo princípio. Ceder (por generosidade) o rim ao irmão que não suporta mais a diálise ou vender (para o bem estar econômico da família) algum órgão para poder quitar as prestações da casa: qual a diferença ética? Ou, dito de outra forma, capitalisticamente falando: que mal há nisso?