O professor pergunta ao aluno: "Quantos rins nós temos?"
"Temos quatro!" responde o aluno. "Quatro?" replica o professor, um desses arrogantes que adoram tripudiar sobre os erros dos alunos.
"Traga um feixe de capim, pois temos um asno na sala" ordena o professor ao bedel.
"E pra mim um cafezinho" acrescenta o aluno ao auxiliar do mestre. Irado, o professor expulsou o aluno da sala. Esse aluno era, segundo dizem seus biógrafos, o futuro humorista Aparício Torelly Aporelly, mais conhecido como Barão de Itararé, que, já adulto, como jornalista, criticava duramente o governo Vargas. Uns policiais entraram na sala dele, quebraram móveis e rasgaram tudo o que puderam. No dia seguinte o Barão, depois de recompor a sala, teria colocado um cartaz na porta: "Entre sem bater".
O incidente na escola não ficou naquilo. Antes de deixar a sala de aula, o Aparício esclareceu:
"O senhor me perguntou quantos rins nós temos. Nós, eu mais o senhor, temos quatro: dois meus e dois teus. Tenha um bom apetite."
Qualquer professor sensato teria elogiado a lógica da resposta e retirado a ordem de expulsão. Mas, quem ainda espera que professores tenham humildade e raciocínio lógico?
Falo agora de outro professor, cujo nome se perdeu no tempo e eu não estou aqui para mentir e inventar fatos. Era um homem de meia-idade, essa idade onde as mocinhas mais bonitas nos chamam de tio, mesmo com o cabelo tingido e a malhação na academia de ginástica. Meia-idade, na verdade, é um eufemismo que esconde a verdade: idade inteira, mesmo porque a velhice é idade em dobro. A esposa aceitava isso como próprio da idade do lobo, coisa com que ela se divertia muito, uma espécie de último adeus à mocidade, pelo qual passam, segundo dizem, todos os homens. Ou passavam, antes do Viagra e sucessores.
Isso até o dia em que o marido chegou pilotando uma motocicleta, dessas em que só faltam som estereofônico, ar condicionado e frigobar. "Agora você extrapolou de vez. Isso é fábrica de acidente. Nem seguradora cobre os riscos de danos. Caminhoneiro não respeita." E tantas outras frases feitas a que ele fazia ouvidos de mercador. A expressão era do tempo do onça, certamente, sendo Onça o apelido daquele governador do Rio de Janeiro que não tinha papas na língua. E papas na língua nada tem a ver com o Vaticano.
Pois um dia, para real tristeza da esposa, que nem se utilizou do apropriado "eu não disse?", numa disputa de preferência entre a moto e uma C-14, adivinhe quem se impôs? Pois lá está nosso herói no hospital, perna gessada suspensa, à espera de uma cirurgia que lhe repare as tais fraturas cominutivas, palavra que ele repetia de boca cheia, para surpresa das visitas, que não imaginavam que o estilhaçamento dos ossos tinha tal nome técnico. Que se preparasse para meses sem movimentação após a cirurgia, disse-lhe o ortopedista.
Temos de reconhecer que ele era um homem conformado. Obteve licença no emprego e se dispôs a curtir aqueles meses todos da melhor maneira possível, mesmo porque o psicoterapeuta hospitalar lhe assegurara que manter a cabeça fresca seria o melhor remédio para a restauração dos ossos esfrangalhados.
Valendo-se da esposa e da Internet, encomendou uns tantos livros, dentre os que sempre desejou ler mas que, dados seus afazeres normais, jamais havia adquirido. Agora ele iria estudar Lógica.
E assim foi. Quem o visitasse veria sobre o criado-mudo uma pilha de livros encadernados, quase todos com pedaços de jornal marcando páginas especiais, que ele lia para a esposa ou para os amigos que o visitavam, o que fazia com vivo entusiasmo.
E todos se admiravam de seu alto astral, mesmo tendo agora na perna uma coleção de pinos, que saíam por todos os lados e eram ligados uns a outros por uma cinta de aço circular.
Por mais que os médicos tentassem, a restauração da perna lesionada não foi completa. Sua deambulação estaria parcialmente prejudicada, como diria um deles, naquela linguagem incompreensível. Em bom português, ele agora mancaria, para tristeza da esposa, que perderia as matinês dançantes no Clube Homs, ali na Paulista. Nada, porém, que o afetasse. "É verdade que tenho uma perna mais curta do que a outra; em compensação, também tenho uma perna mais comprida do que a outra. Logo, uma coisa compensa a outra".
Quando a mulher disse que estava indo ao shopping "comprar sapato" ele sugeriu que ela comprasse um par, pois não pegaria bem ela sair à rua com um pé descalço. Ela disse-lhe que teria de descer os lances de escada, pois o elevador, que apresentara defeito, ainda estava "em manutenção". E o marido: "então nunca vai voltar a funcionar, pois manter é conservar a coisa como está".
De outra feita propôs-lhes o seguinte problema: imaginem uma banheira cheia de água. Eu lhe dou uma colher de sopa e uma xícara de café, dessas menores que existem. Qual o modo mais rápido de esvaziar a banheira? Uns escolheram esvaziá-la com a colher, outros com a xícara. E ele: "o modo mais rápido de esvaziar a banheira é, logicamente, retirando o tampão".
A mulher e os amigos já estavam começando a lembrar-se do velho Alonso Quijano e o resultado de sua leitura desbragada, que o transformou no Cavaleiro da Triste Figura. Estariam eles diante de um novo D. Quixote? Ele, porém, estava mais "lógico" do que nunca, o que o tal psicoterapeuta achou de muita conveniência, pois ficar imobilizado, como era necessário, sem algo que o distraísse seria abrir a porta para uma depressão pós-traumática. E as conseqüências seriam, podiam crer, muito piores.
Certo dia sua mulher informou que iria até a papelaria da esquina obter umas tantas xerocópias de uns documentos, para apresentar em uma repartição pública. "Quanto eles cobram cada cópia?" indagou ele, para surpresa da mulher. "Dez centavos a unidade, até um total de 100 cópias" respondeu ela. "E se forem mais de 100 cópias de um mesmo original?" quis saber ele. "Aí o preço cai para oito centavos a cópia" foi a resposta. "Supondo que acima de 200 cópias cada uma custe seis centavos e assim sucessivamente, se você tirar mais de 1.000 cópias, elas lhe sairão de graça. Use as que vai precisar e utilize as outras para embrulhar peixe".
Positivamente, o marido tinha enlouquecido. Ela, porém, saiu à rua para fazer as tais cópias e, aproveitando a oportunidade, passou pelo supermercado ao lado, onde comprou mais artigos do que imaginava fazer. Com os dois braços cheios de pacotes, abriu a porta da sala com extrema dificuldade e foi direto à cozinha guardar o que havia comprado, deixando para fechar a porta logo em seguida.
Era inverno e ele, ainda imobilizado, queixou-se à mulher: "Feche a porta porque está muito frio lá fora". Pois foi a senha para a recuperação total dele, que ouviu dela o que jamais esperara ouvir. Finalmente ele estava sendo compreendido pela esposa. Não havia pregado num deserto, como lhe havia parecido tantas vezes. Era sua consagração como professor de lógica que vinha tentando ser há tantos meses.
De fato, ela, muito séria, as duas mãos nos quadris e as pernas afastadas uma da outra, chegou-se à porta que separava a cozinha da sala, e sapecou: "O senhor vai querer me convencer de que, se eu fechar a porta, vai ficar menos frio lá fora?"