"Chegamos capital sábado pt Beto farah exame juiz pt Beijos Ana".
O velho releu várias vezes o telegrama, que passou, por fim, à esposa. Ela diminuiu o som da televisão, perdendo a conclusão da receita de cóc-o-van, de que estava tomando nota e pela qual esperara tanto. Tomara que isso valha a pena, disse ela a meia voz, mais para consolar-se da perda do que irritada pela interrupção feita pelo marido. Depois de tantos anos de casados, se não nos acostumarmos com essas inconveniências, a vida vira um inferno, é ou não é dona Cida? Era a observação que ela fazia constantemente à vizinha, uma viúva tão velha quanto ela, que já presenciara diatribes inúmeras, talvez já esquecida das que lhe aprontava o falecido, que Deus o tenha.
A esposa leu e releu a mensagem, que segurava na mão, como se aguardasse que novas palavras dali brotassem e esclarecessem o que significava aquela economia de palavras. É que no telegrama a gente paga por palavra, explicou-lhe o marido, pacientemente.
Ela virou o papel e leu no verso o nome da cidade de origem. Mas eu não conheço ninguém em Nhandeara! Nem sei onde fica isso. E quem é Ana? E Beto? Eu não conheço Alberto nenhum. Tem certeza de que esse telegrama era para nós? O velho tentou ajudar: Ana é a nossa filha, Juliana, que nós chamávamos de Ana, não se lembra mais?
Que Juliana nem meio Juliana! Nossa filha se chama Sebastiana e tinha, e pelo jeito ainda tem, um horror a esse nome. Tanto nome bonito no mundo e foram-me dar um nome de cozinheira, era o que ela sempre dizia. Não se alembra disso? E foi você quem escolheu esse nome horroroso, meu caro. O velho tentou justificar-se: mas que eu fiz isso por causo da promessa pro São Sebastião quando você estava pra perder o rebento, que era justamente a Ana, você esquece.
Mas meu velho (ela agora tentava amenizar a crítica) com tanto nome de santa, você foi logo se apegar a um santo todo flechado! Eu sempre lhe agradeci a promessa, mas nunca entendi a escolha do santo, é só isso.
Deram-se um sorriso de reconciliação, como tantas vezes ocorria, e voltaram ao telegrama. E Beto deve ser como eles chamam o Humberto, filho dela. Também, pudera, tanto tempo longe, nem se interessaram se estávamos vivos ou mortos durante todos esses anos. Nem quando do meu infarto quiseram saber de nós, queixou-se o homem. A velha, porém, toda maternal: pobrezinha, a vida dela não tem sido fácil. Mal nasceu o filho, o marido se escafedeu com aquela sirigaita, sumindo de Fernandópli. Diz que a Ana ficou muito doente, internada, o filho sendo cuidado no colégio interno. Pobrezinho! Veja como é o destino: agora ele está pensando em ser juiz. Não é uma alegria para uma mãe? Isso compensa todo sofrimento dela! Ele vai dar em dobro tudo o que ela tem feito por ele. Eu sempre rezei pra que isso acontecesse.
Quer dizer que meu neto vai ser juiz, disse o velho, mãos nas costas, olhando para além da janela. E juiz de direito, nada de juiz de futebol, que eu não estou para ouvir xingação contra minha filha, sentenciou o avô. Hoje até mulher já é juiz de futebol, veja que esculhambação.
A velha acudiu, sensata: mas para ser juiz carece de ter idade. E nosso neto não tem idade para ser juiz. Como não tem?, voltou o velho. Nossa filha se casou há mais de quinze anos, e quando casou já estava grave. Faça as contas: o Beto deve ter, no mimo, no mimo, uns dezasseis ou dezassete anos. Ainda assim, isso não é idade para ser juiz, ponderou a avó. Por mais que eles digam que estão precisando de gente, não vão abrindo a caixa preta assim sem mais nem menos.
O velho riu muito da jocosa observação da esposa, lembrança da já velha campanha presidencial. Um riso que se convolou em tosse e um quase engasgo. Ele se conteve e tentou concatenar o pensamento.
Deve de ser o seguinte: eles virão pra São Paulo, para que ele estude e despois faça exame para juiz. Só pode ser isso. Doutor Humberto. Até que o nome vai bem num juiz. Humberto Alencar. Se é que ele não tem apenas o nome do desinfeliz do pai, disse a velha, diminuindo o entusiasmo do marido.
Ficaram a fazer conjecturas até tarde. Por fim, foram deitar felizes com a paz que finalmente caíra sobre o lar da filha, aquela sofrida filha que não merecia tudo o que tinha já passado. Mas Deus escreve direito por linhas tortas.
O colchão, porém, nunca lhes pareceu mais duro. Rolaram de lá pra cá, e de cá pra lá, e nada de pegarem no sono. O velho, dando-se por vencido, acendeu o abajur e passou a descrever a carreira do neto. Só quando o desembargador Humberto Alencar estava para ser eleito presidente do Tribunal foi que o avô caiu no sono. A velha, esta havia acompanhado apenas metade da carreira do neto.
Dia seguinte o pedreiro aposentado atreveu-se a caiar o quartinho que servira de dormitório da empregada, dispensada por medida de economia, pois, nesses tempos bicudos em que vivemos, a infeliz comia por três, dona Cida. Por três! E a vizinha achara, de fato, prudente que os parcos rendimentos do casal não servissem para alimentar aquele mulherão, que bem podia pegar no cabo de uma enxada, em lugar de esvaziar a geladeira como fazia. Comia por três, dona Cida! Pois agora o quartinho havia adquirido um ar mais alegre, ainda que à custa de um lumbago, em que qualquer emplastro Sabiá e chá de losna dariam jeito. Nossa filha não iria aceitar menos que isso, não é mesmo, minha velha? Pena que não dá pra trocar os móveis. O dinheiro só deu para um colchão novo. De casal.
Finalmente, o sábado. Um vaso de violeta sobre o pichinchê e excesso de bom-ar pela sala, para afastar o cheiro de gordura, pois a filha talvez ainda fosse alérgica. A última coisa que eles queriam é que a Ana se pusesse a espirrar feito bode velho, reclamando do cheiro de mofo da casa, ou do cigarro do pai, como fazia quando era criança. Ainda mais agora que morava no sertão, curtindo o ar puro daquela cidade cujo nome a velha não conseguira guardar.
Cada automóvel que entrava na rua esburacada, em geral de pouco tráfego, era um solavanco no coração dos dois velhos, debruçados sobre a mureta do jardim. Lá pelas tantas um táxi dobrou a esquina, vindo em marcha lenta, como a indicar que seus ocupantes procurassem o número da casa. Depois de tantos anos, era natural que a filha já não soubesse direito onde os pais moravam. Com tanto progresso! E lá vem o táxi bem devagar, que só se apressa quando o velho lhe faz sinal com o braço, indicando o local da parada.
Fim da viagem. O motorista salta do automóvel, para retirar do porta-malas duas sacolas de lona, que coloca na calçada. A passageira, finalmente, dá o ar da graça. É uma velha, mais parecendo irmã do que filha da dona da casa. Os cabelos brancos, desgrenhados, estão parcialmente contidos por uma tiara de plástico. O rosto é grave, a voz é rouca. "Sai logo daí, seu imprestável!" É como ela se dirige ao filho, que parece acuado no banco de traz do carro. Finalmente, ele sai lentamente do táxi, muito assustado. É um garoto meio desajeitado, que a mãe puxa pelo braço e praticamente arrasta até o casal de velhos. "Pede bênção pra os avô, muleque!"
O quarteto entra na casa e o pai tenta mostrar a satisfação pela visita. Foi muita honra ela lembrar-se dos velhos. Uma pessoa tão ocupada como nossa querida Ana. Eles esperam que a presença dela signifique esquecimento de tantos desentendimentos do passado e que agora eles, os quatro, possam viver como uma autêntica família. A família com que ele sempre havia sonhado. A velha, muda de emoção, concordava com o marido, pelo que se colhia dos reiterados acenos de cabeça, fazendo suas as palavras do velho.
Não será por muito tempo essa importunação, diz a filha, curta e grossa. É só o tempo desse paspalhão fazer os exames do juízo que o diretor da escola encomendou. Ele já repetiu de ano umas três vezes e eu quero saber se isso tem jeito, concluiu a megera. Se essa cabeça tem arrumação.
Os velhos, petrificados, não sabiam o que dizer. Olharam-se e do fundo do coração deles saiu ao mesmo tempo a mesma interrogação: juízo?
Já na semana seguinte havia no lado de fora do portão uma tabuleta dizendo que ali havia um colchão quase sem uso a venda.