Ao Cláudio Renato,
que entende disso melhor do que eu.
Imagino-me fazendo um curso de cinema na Universidade de Oslo, naquele ritmo slow motion próprio dos noruegueses. "Não deixe para amanhã o que pode ser feito depois de amanhã" foi o dístico que sugeri para a bandeira deles. Acho que ainda não deliberaram a respeito. Caberia bem aquele diálogo entre mãe e filho que ouvi alhures, substituindo-se os personagens originais por dois loiros: "Maínha, taturana queima a pele da gente?" Minutos depois: "Queima, sim, meu rei. Ela já encostou ni tu?" Mais alguns minutos: "Inda não, maínha, mas está perto".
Você já viu algum filme norueguês? O Bergman não era norueguês, mas sueco, meu caro amigo. Precisas ler mais sobre cinema, rapaz.
Mas eis que chega o fim de ano, devo apresentar meu projeto e me ocorre trabalhar o mito de Sísifo. Mitos, essas narrativas enigmáticas que nos proporcionam contato com nossas tradições arquetípicas.
Com aquele algo profundo, que a cultura teima em abafar, em recalcar, como se dizia no tempo em que o Hitchcock resolveu nos dar aulas de psicologia no Spellbound, no qual a Ingrid Bergman, que, aliás, nunca foi casada com Ingmar, ao contrário do que você imagina, tira e põe os óculos, para interpretar uma mulher que não se limita às coisas triviais do lar, pesasse sua extraordinária beleza. Arguta, com pouquíssimas sessões de psicanálise descobre os motivos da dupla personalidade do Gregory Peck, que, devidamente curado, acaba casando-se com ela, tudo rodeado de cenário feito por ninguém menos do que nosso Salvador Dali. Se é para mostrar pesadelos é com ele mesmo.
Casamento, aliás, que os códigos de ética dos que cuidam de nossas mentes não recomendam. Sabe lá o que é ficar sendo analisado o tempo todo pela companheira? Para cada projeção do cliente, uma contra-projeção do analista, eis a recomendação que nem todos observam. Nem o Jung, aliás, que levava para a cama suas clientes, contando com a compreensão científica da Emma. E depois se queixam de que o casamento é coisa difícil.
Não penso tanto na narrativa clássica, mas num Sísifo aggiornato, ou, na linguagem hollywoodiana, um remake do mito. Em lugar do Gregory Peck escalaríamos o Anthony Hopkins. Ele seria um relojoeiro cego, que, padecendo de artrite, deve executar seu serviço calçando luvas de boxe. Cada vez que um freguês se aproxima do balcão, seu fiel papagaio, empoleirado junto à porta, antecipa-se ao relojoeiro: 'não está pronto! não está pronto!'. E o freguês, compreensivo, se retirará em silêncio, tal como fizera no dia anterior. E voltará no dia seguinte. And so on.
Se o roteiro fosse rejeitado (o lobby dos fabricantes de relógios não concordaria com a vulgarização de uma atividade tão nobre, incapazes de perceber a mensagem sutil que estaria embutida no fato mesmo do decurso do tempo, aquilo que para os hindus é representado pelo minúsculo camundongo, que, lentamente, tudo rói; já para o Dali, é um relógio que se derrete), eu teria uma alternativa: num lago congelado da Noruega (clara referência ao Sétimo Selo do nosso vizinho Bergman, já se vê), o personagem (que tal Brad Pitt? Melhor o Tom Cruise, vestido de samurai) é encarregado de fixar sete lanças flexíveis no gelo do lago, cada uma situada a sete metros da outra. Sete: reparou no número cabalístico?
Sobre a primeira ele coloca um prato, que, em face do giro cada vez mais rápido, contornará os efeitos da gravidade (há aí também uma mensagem implícita, que o espectador atento facilmente detectará: a vida como algo sem fim, que se renova sempre, à maneira da visão budista) evitando que o prato se espatife lá embaixo (não se esqueça de que o céu é em cima e o inferno é lá embaixo, nas profundas, onde o pecador também se espatifará, agora na visão cristã).
A operação se repetirá em cada uma das demais lanças. Ao terminar de acionar a sétima lança, ele notará que o prato da primeira ameaça espatifar-se no chão e corre para lá, recomeçando a faina, que se repetirá vezes e vezes, simbolizando a Eternidade.
Sete dias na semana, sete pragas no Egito, sete grandes potências mundiais, interprete como quiser.
'Isso o pessoal do Cirque du Soleil faz com um pé nas costas!', exclamará o produtor. 'Mas, usando chuteira de futebol?', obtempero, para mostrar minha cultura. 'E com travas de borracha?!'
Tenho na manga um terceiro roteiro, bastante original, que ele certamente acolherá entusiasmado: o Matt Damon, calça toda rasgada e peito nu, é destacado para levar uma pedra enorme até o alto de um fjord. A inclinação do morro e o peso da pedra farão com que nosso herói leve exatos 365 dias para atingir o cume do monte. Colocando ali a pedra, no último dia do ano, ele retira de algum lugar (os assistentes de produção existem para isso mesmo) uma garrafa de champanhe, com cujo líquido ele esborrifa toda a equipe de filmagem, à moda dos pilotos de Fórmula 1. O filme dentro do filme, percebeu? Com isso a pedra se desgarra e volta ao lugar onde estivera no começo do filme. Ele não desanima e desce até o fundo da ribanceira, recomeçando a árdua tarefa, já agora num segundo filme.
A que se seguirá um terceiro e assim por diante, sempre aproveitando boa parte do material do primeiro deles. Tudo se repetindo ao som dos Rolling Stones (só os iniciados entenderão o recado: pierre qui roule n'ammasse pas mousse! No close-caption em português do DVD: pedra que rola não junta musgo).
E, assim, a pedra será levada ao alto do morro vezes sem conta, até o momento em que, ou porque a bilheteria minguou com tanta repetição, ou porque o nosso herói já está cansado da execução da tarefa, ele se sentará junto à pedra. Não ao lado, mas na parte de baixo, impedindo com isso que ela desça o barranco. Estagnada, ela permitirá que cresça o indesejável musgo, de que, aliás, falava a Mercedes Sosa, musgo esse que marcará o dia, mês e ano em que toda aquela labuta teve fim.
A câmera fará um close sobre a pedra e recuará lentamente, mostrando sucessivamente o morro (e, com isso, a insignificância da outrora enorme pedra), a cidade de Bergen (e, conseqüentemente a insignificância do morro que custosamente o herói escalava), a Noruega, o planeta e, por fim, a via láctea (indicando a insignificância de tudo o mais, diante de algo maior, percebe?), transmitindo uma mensagem que o produtor não apreende muito bem, por mais que eu lhe explique. Ele me sugere algo mais cool.
Deve ser algum trocadilho norueguês.