"E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza."
Pero Vaz de Caminha
(Na famosa carta enviada ao rei de Portugal
e que pode ser lida clicando aqui)
"Bons tempos !" é como as pessoas de mais idade, dessas que se utilizam daquela fila especial nas agências bancárias ("vocês que já são aposentados e têm todo o tempo do mundo ocupam o lugar que deveria ser de quem ainda trabalha", protestou alguém dia desses, com certa dose de razão), se referem à sua juventude. Não adianta mostrar que a mortalidade infantil era maior, que a medicina não havia chegado aonde chegou hoje, que as distâncias ficaram menores, que o país caminha (passe o trocadilho) mesmo sem ter um governo digno do nome.
Nem adianta comprovar que o nepotismo e a bajulação não nasceram ontem, pois vieram para o Brasil nas caravelas trazidas pelo Pedro Álvares Cabral. Para os velhos, bons tempos eram aqueles. Como diz o Rubem Alves, "antigamente é um tempo que se foi, mas que se recusa a ir de vez e fica dentro da gente, atormentando o coração com saudade".
É como dizia o fazendeiro, olhando o céu na sexta-feira e pensando em sua lavoura : neste fim de semana teremos dias ótimos, pois aquelas nuvens ali são chuva na certa. Como reagiria a filha dele, que havia programado uma ida ao clube ou à praia ? "Tempo bom" diz com empáfia o locutor de rádio encarregado de divulgar os relatórios meteorológicos. Tempo bom para quem, cara pálida ?
Bons tempos eram aqueles em que nossos pais (mais exatamente, nossa mãe) nos mandavam à venda (nome que se dava ao empório, onde se vendiam uns misteriosos "secos e molhados"), levando a caderneta. Ou cardeneta, como diziam muitos. Quem se lembra disso ? No fim do mês, o dono da tal venda fechava a conta, nós entregávamos a ele o dinheiro contadinho (quem tinha conta em banco naquela época ?) e ele nos recompensava com uma garrafa de vinho (nacional, claro) ou uma caixa de balas. Se fosse bom freguês, caixa de bombons.
No fim do ano era ocasião dos almanaques, um caderno mais encorpado, editado por alguma empresa com precoce visão de merchandising, que nos fornecia bons momentos de distração, com palavras cruzadas, charadas e curiosidades várias. A mais famosa era a do biotônico a que o nacionalista Monteiro Lobato alugara o talento, criando o famoso Jeca Tatu, que, pretendendo fazer propaganda do tal licor, acabava fazendo propaganda da botina que o personagem passou a usar para evitar a verminose. Quem acha que inserção de propaganda (hoje se usa o americanista comercial) em veículo aparentemente neutro, como as novelas, é coisa de hoje sabe pouco da vida. Veja os filmes em branco e preto, dos anos 40, e lá encontrará alguma tabuleta que não tinha motivo algum para estar ali, informando, como quem não quer nada, as excelências de algum produto. Cigarro ou cerveja. Ou a marca do carro. Ou da máquina fotográfica que aparece em close.
Meu pai, não sei como, descobriu o Almanaque do Porto, que era editado pelo sindicato dos padeiros de Portugal. Era um livro de capa dura, com os mais surpreendentes assuntos, que líamos com grande proveito. Até roteiro de viagem ele apresentava. Todo fim de ano, lá estávamos nós entretendo-nos na tal fonte de conhecimento. Será que ainda existe ? E o Bertrand ? E o do Pensamento ?
Lembrei-me disso a propósito de algumas noções que a vida moderna não nos proporciona, embora estejamos em contato com símbolos de algo que nos escapa. Talvez seja falta de um bom almanaque.
Por exemplo, você sabe o que é ara ? Que vem a ser isso ? Quem se divertiu nas palavras cruzadas dos almanaques sabe que é o nome do altar de sacrifício utilizado pelos nossos antepassados. É importante saber isso porque, numa dessas conversas cultas que nós travamos em festas de casamento ou de aniversário, você pode levar o assunto para a religião, vai até a antiguidade, fala da oferta das primícias e, quando o interlocutor der por si, lá está você falando da ara. E pode ir mais adiante em sua exibição : ara era também aquela trave horizontal da cruz onde pregaram o Cristo. Figurativamente, um altar de sacrifício. Isso deve impressionar muito as viúvas de meia idade.
E ainda esclarecer que ara não se confunde com a mó, que não é apenas um adjetivo de elogio usado pelos mano (exemplo : "minha mina é mó legal, cara"), mas outra pedra. Esta é aquela que move o moinho, fazendo farinha, também um assunto interessante para um bate-papo num happy-hour qualquer. E aí você aproveita para perguntar se a moça é uma igapirense. Ou ela lhe dá um bofetão, toda ofendida, encerrando a conversa, ou, modesta, pergunta o que é isso. E você, afetando naturalidade, mostrará surpresa : "Como ? Você não sabe ? Igapirense é quem nasce na cidade de Álvares Florence". Ela ficará encantada com tua cultura, muito embora nenhum de nós três tenha a menor idéia sobre onde fica essa cidade. Nem como de Álvares e de Florence foi nascer um palavrão desses.
Outro bom tema diz com o chamado "e comercial" ou &. Que significa isso ? Bem examinado, o símbolo mostra a conjunção coordenativa latina "et". Pois o nome que os de língua inglesa deram a esse símbolo é ampersand. De onde veio isso ? Da aglutinação de uma explicação : "and per se and", isto é, é um e que é e por si mesmo.
O leitor chamará isso de cultura inútil. Engano seu. Certa ocasião mestre Fernando Sabino publicou uma de suas saborosas crônicas, na qual ele aludia a esse símbolo comercial, cujo nome ele desconhecia. Pois um leitor atrevido escreveu-lhe, exibindo sua cultura de almanaque, e reclamou, como cachê, um livro dele, devidamente autografado. Quem for à minha casa notará na estante, dentre outras preciosidades, o "Encontro Marcado", com autógrafo do autor agradecido. O que mostra que essa cultura não é tão inútil assim.
E o sinal "@" dos e-mails, que os brasileiros insistem em chamar de arroba, pois era empregado entre nós para indicar a saca de mais ou menos 15 quilos ? Que tem a ver arroba com a Internet ? Simplesmente nada. Pois ainda uma vez é a importação descuidada de algum transgênico lingüístico. Ocorre que, quando alguém criou o correio eletrônico (aquele e de e-mail se refere a electronic, como sabeis), pretendeu informar o endereço da pessoa compondo-a de três partes distintas : o nome do usuário (username, se preferis), o nome do servidor (a empresa que nos transporta pela Internet) e a indicação do ramo de atividade do passageiro ou usuário da Internet. Para dizer que alguém está ligado ao servidor terra, ou servidor gmail, ou qualquer outro, faz-se isso empregando a preposição "at", que é representada pelo tal símbolo @. Como se diz "João dos Santos, comerciante brasileiro", também se diz, em internetês, "[email protected]", isto é, "João do servidor Terra", ou, simplificando, "João da Terra", que atua no ramo comercial no Brasil. A diferença é que João dos Santos há muitos, ao passo que "[email protected]" só haverá um. A ausência de cedilha e de til é uma imposição, mais uma, dos norte-americanos, que não perdem tempo com essas bobagens. E todos nós passamos a ser considerados comerciantes, veja só.
Individualidade é isso, filosofará você, impressionando ainda mais a já boquiaberta garota, objeto de seus maus propósitos. E ela talvez concorde em visitar a tua garçonière.
Não sabes o que se esconde por trás dessa francesia ? Não ? Quem mandou você ser tão moço ? Então procure no Google algo sobre o romance entre a Pagu e o Oswald de Andrade, que, aliás, acabou gerando um filho, batizado de nada menos do que Rudá Poronominare, e veja como se denominava o local dos chamados encontros fortuitos naqueles idos e vividos tempos.
Tempos bons aqueles !