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Brian de Palma Doutrinando

sexta-feira, 28 de março de 2008

Atualizado às 08:05

"A sociedade não pode pretender que o Estado viole as suas próprias regras, garantidoras dos direitos fundamentais de todos os seres humanos, sob pena de não mais se justificar, moralmente, a existência do Direito Penal, porque, nesse caso, ter-se-ão legitimado os valores e os meios empregados por aqueles cujos atos o Estado deve impedir".

Eduardo Pizarro Carnelós, in Migalhas, 17/8/2006

Dizem que o velho advogado de júri, durante uma sessão, ouviu e mais ouviu o jovem promotor citar autores e mais autores. O Hungria disse isto, o Carnelutti disse aquilo, o Ferri disse mais o seguinte, concluindo que o réu deveria ser não só condenado como apenado severamente, tendo em vista isto e mais aquilo. Pouco afeito ao salutar esporte de abrir e ler livros, o astuto advogado passou a fazer as afirmações mais disparatadas, citando o conhecido jurista italiano Coriógi, segundo cuja lição, em casos como aquele, não faz sentido que.

Quando acabou o julgamento o jovem e modesto promotor (há promotores modestos, acredite !) foi à biblioteca do Tribunal de Justiça procurar algum livro do tal autor, que ele não conhecia. Na praça João Mendes, bem debaixo das janelas da biblioteca, por uma coincidência junguiana, o bilheteiro italiano anunciava os últimos bilhetes que tinha à venda, dizendo que seriam sorteados logo mais, desmascarando, tarde embora, o esperto defensor e seu refrão : "Córi oggi! Córi oggi !"

Si non è vero, è bene trovato, como diria minha amiga Ada Grinover, a menina que não viu a uva, viu a guerra.

Muitos leitores talvez não identifiquem o nome do personagem que aparece no título destas considerações. Depois de um grande sumiço, ele voltou, com um filme que os críticos consideram de pouca inspiração. Para azar dele, sua Dália Negra foi exibido ao mesmo tempo em que apareceu um imperdível Xeque-mate, um dos mais criativos roteiros dos últimos tempos.

Faço-lhes, pois, a apresentação do De Palma : discípulo e admirador confesso de Alfred Hitchcock, costumava incluir em seus filmes referências a trabalhos alheios, principalmente os realizados por seu mestre. Desde Carrie, a estranha (cuja cena final, um achado cinematográfico, nos fez pular da cadeira) passando por Dublê de Corpo (onde ele usa e abusa dos recursos hitchcockianos de fazer parecer o que não é), até Os Intocáveis lá estão referências que o cinéfilo se diverte em tentar encontrar, em um jogo muito ao gosto do cineasta inglês, que fazia questão de dar uma rápida aparição nos filme que dirigia, apenas para provocar os espectadores e aguçar a expectativa deles. Aos amantes de cinema, uma pergunta, que os moderninhos chamam de quiz : em qual dos seus filmes o Alfred Hitchcock aparece tentando passar por uma porta rotatória carregando um violoncelo ?

Pois quero falar justamente do último filme referido (cuja antológica cena da escadaria, por sinal, foi inspirada no Encouraçado Potenkim, de mestre Eisenstein), que a televisão reprisa freqüentemente. Se o leitor está lembrado, preso Al Capone pelos "intocáveis" agentes do governo, não pelas matanças que mandara realizar, mas pela sonegação fiscal que cometera, algo que deve ter inspirado nossos recentes Ministros da Justiça para mandar para a cadeira tantos colarinhos de renda, será ele submetido a julgamento pelo petit jury. Capone (magistral interpretação de Robert de Niro) está calmo, sorridente, na certeza da absolvição. Eis que o chefe dos agentes do governo descobre com um capanga do mafioso, que havia sido morto pela polícia, uma lista que indica que todos aqueles jurados haviam sido subornados pelo réu. Foi lá que nossos parlamentares conheceram o mensalão. Daí o ar vitorioso do gângster.

Que fazer ?

Os verdadeiros juristas teriam dificuldade em resolver esse quebra-cabeça sem ser propondo o suscitamento de um incidente processual, com observância do princípio do contraditório, duplo grau de jurisdição e tudo aquilo que os norte-americanos incluíram nas primeiras dez emendas apostas à Constituição lá deles, às quais deram o nome de American Bill of Rights, isto é, Relação de Direitos privativos dos norte-americanos, a significar que eles não se aplicam a quem não nasceu ao norte do Rio Grande, o que no Brasil significa recursos e mais recursos até que. Nem se aplica lá a quem está preso em algum galinheiro situado em alguma ilha do Caribe. "Os muçulmanos não estão em território norte-americano, mas em território cubano", esclarece o Bush em rede nacional de televisão. E há norte-americanos que acreditam nisso !

No tal filme, levado o problema ao juiz presidente do júri, ele encontra a solução, que faria babar muito jurista brasileiro e certamente provocar um sorriso a mais no rosto do ministro Marco Aurélio, quando concedesse mais uma de suas liminares : consulta o colega da sala ao lado, onde se julgaria outro réu, e, pragmaticamente, trocam de jurados. Assim, os peitados jurados que estavam aqui vão julgar o réu da sala de lá, enquanto os jurados da sala de lá virão julgar o réu da sala de cá, pois nada haviam recebido do acusado a título de estímulo financeiro.

Al Capone protesta no filme e eu, quando assisti pela primeira vez, protestei veementemente do lado de cá, pois há um princípio chamado do "juízo natural", que não permite esse tipo de expediente, mesmo porque.

O problema é que, por vezes, ao ouvir declarações de certos advogados brasileiros, fico me perguntando se eles não estariam a aprender Direito com mestres como o Brian De Palma. Um doutor Coriógi um pouco mais sofisticado.