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Ordem e Progresso

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Atualizado em 6 de dezembro de 2007 15:02

"Se um observador de Marte pudesse examinar o comportamento dos homens na Terra, jamais esse observador teria a idéia de que o comportamento humano pudesse estar sendo dirigido pela razão; menos ainda por uma moral responsável."

Konrad Lorenz

Há um filme do Sam Peckinpah, que era neto de um cacique navajo e que morreu, precocemente, aos sessenta anos de idade, alcunhado pela crítica de "poeta da violência", pois iniciou isso de mostrar as cenas mais cruas em slow motion, o que dilui o impacto daquilo que ali é mostrado, no qual filme, logo no início, umas crianças brincam pondo fogo nuns insetos e divertindo-se com os escorpiões contorcendo-se antes de morrer. The Wild Bunch, em inglês, o filme chamou-se Meu Ódio será sua Herança, no Brasil. Embora de 1969, o filme é de uma atualidade impressionante, no que diz com a desmistificação dos heróis, coisa que os faroestes dirigidos pelos brancos até então não haviam feito, considerando que os verdadeiros donos da terra, os indígenas, é que eram mostrados como os vilões da história. Como seria a biografia de um Buffalo Bill mostrada por um pele-vermelha ?

Não é, porém, de escorpião que pretendo falar, mas de formigas. Uma de minhas diversões de criança era perturbar a caminhada ordeira das formigas cortadeiras. Impressionava-me isso de elas saírem de casa, em fila indiana, subirem na árvore, cortar um pedaço de folha, cujo tamanho é maior do que qualquer delas, e voltarem, sempre em fila indiana, para dentro da toca, onde depositarão aquele pedaço de folha naquele cantinho ali à esquerda, como diz uma tabuleta posta logo depois da entrada, onde outras folhas estão produzindo o fungo que alimentará a colônia, que, assim, produzirá novas formigas, que colherão mais folhas, que. Eu interrompia com o dedo aquela fila, fazendo um risco perpendicular a ela, apenas para observar a corrida circular frenética das formigas, temporariamente privadas da segurança do caminho que a primeira da fila havia traçado. A ordem imposta tem essas desvantagens, filosofava eu ainda criança.

E falo também de outros insetos. No verão, em dia e hora previamente traçados, de um buraco do chão saía um enxame de siriris, que é como eram chamados uns insetos alados que, mais tarde, vim a saber pertencerem à família das térmitas. Eles voavam em nuvem, tentando escapar dos passarinhos que, previamente avisados por algum quinta-coluna infiltrado na toca, os caçavam aos magotes. Ao fim da revoada os que se salvavam perdiam as asas e iniciavam nova vida, infestando os móveis de madeira de alguma casa próxima, já sob o nome de cupins. Também me atraíam as abelhas, um inseto extremamente simpático, que, sem haver feito curso de engenharia, havia descoberto que os casulos hexagonais permitem o melhor aproveitamento do espaço da colméia, ao contrário do que ocorreria se essas casinhas fossem redondas. E resistem melhor ao impacto do peso, mais do que se fossem uns cubos. E eu ainda não sabia que o cérebro de uma abelha é do tamanho da ponta de uma agulha de costura.

Com o tempo vim a aprender que tanto as formigas, como os cupins e as abelhas apresentam invejável organização social. Aquela dança, formando um oito (aliás, o 8, deitado, é o símbolo do infinito), que elas fazem não é algo gratuito. A posição da figura funciona como uma agulha de ímã, indicando às colegas de profissão onde se encontra a fonte de pólen e mel que a dançarina acaba de encontrar. E o tamanho da figura desenhada indica se o estoque da fonte pode ser considerado pequeno, médio, grande ou extra large, como se estivéssemos experimentando cueca. Além disso, as tarefas são distribuídas entre os membros da colônia, onde há nítida distinção entre operários e soldados, coisa que os chineses conhecem muito bem. Isso para não falar na rainha, que, tanto quanto as súditas, é predestinada a isso desde o momento do nascimento.

Konrad Lorenz nos ensina que esses insetos não precisam de um Moisés a descer de um monte com as tábuas da lei a ser mostrada aos seus liderados. Os dez mandamentos, no caso dos insetos, já vêm impressos no cérebro (!) deles quando nascem. Ele chama isso de imprinting, o que me faz pensar no tamanho do carimbo que imprimiu essas regras no cérebro (!!) dos insetos.

Ele descobriu também que não há, entre os patos e seus familiares, qualquer escola de natação, ao contrário do que pensávamos. Saiu do ovo, o patinho, tanto quanto o marrequinho e seus demais primos todos, se encaminha para a água e passa a dar show aquático, sem isso de ter mãe por perto avisando para prender a respiração, mover esta perna, agora aquela outra, cuidado com a câimbra !, você está cansado ?, quer que eu peça pro professor para tirar você da água ? Mãe de pato simplesmente confia na Natureza e naquilo que foi impresso no cérebro de seu filhinho querido. Ao contrário das nossas, aquela chatice !, que de tanto nos mimar nos deixou nessa insegurança que anos de psicoterapia não conseguem eliminar. Aliás, o Lorenz jamais encontrou pato com complexo de Édipo.

Eis o que eu queria dizer: os insetos e as aves não precisam colocar pavilhão nacional por todo lado para aprenderem que a ordem não leva necessariamente ao progresso. Se levasse, as abelhas hoje produziriam mel light e as patas botariam ovos com menos colesterol. Os edifícios altíssimos construídos pelos cupins ainda não contam com elevador nem escada rolante. Que progresso é esse ? Aliás, que é progresso ?

Em compensação, à medida que os cérebros foram aumentando de tamanho, as possibilidades de combinações entre os estímulos recebidos foram atingindo proporções assustadoras. À meia dúzia de ordens impressas pela natureza no cérebro (!!!) dos insetos seguiu-se um número incontável de regras de conduta, muitas delas adquiridas pelo aprendizado, à medida que o cérebro aumentava de tamanho. Uma dessas regras diz respeito à liderança do grupo.

Enquanto entre as formigas e as abelhas o líder é predestinado, entre as aves e os animais há todo um ritual para a escolha desse líder. Durante muito tempo se pensou que imperasse a lei do mais forte. E isso tinha sua lógica. Quando dois cabritos monteses trocam testadas, embate cujo som ecoa por todo o vale, excitando as fêmeas, que aguardam com qual deles acasalará, para produzir rebentos da melhor linhagem, a finalidade não é o mais forte eliminar o mais fraco. É apenas isso: decidir quem está em condições de liderar ao bando e produzir filhotes sadios.

Entre alguns animais, é o mesmo Lorenz quem nos adverte, essa luta não é tão incruenta assim. Chifradas, mordidas e coices podem, de fato, produzir nos disputantes tantos ferimentos que só o mais robusto sobrevive, se algum deles vier a sobreviver. A regra na Natureza, porém, continua a mesma: é preciso selecionar bem o macho, para a perpetuação da espécie. Algo bem diferente quando se cuida da escolha de um presidente da República, por exemplo.

Descobriu-se, porém, que entre os primatas inferiores (não nos esqueçamos de que o ser humano é classificado, por ele próprio, de primata superior) há uma variante dessa regra: um dos candidatos à liderança utiliza de algum estratagema que não implica a presença de mais força. É o trunfo da esperteza. Torna-se líder, então, não o mais forte, mas o mais esperto.

E isso não nos deveria surpreender, pois essa malandragem é fácil de constatar na vida animal. De onde vem a palavra "estelionato" ? Do latim, claro: stelio, stelionis. E a que se referia esse nome ? Simplesmente ao camaleão. Tanto que a palavra também era empregada para designar alguém safado. Quibus modis stelionem istum cohibeam ? "De que modo vamos enquadrar esse patife ?", como diríamos hoje de algum de nossos políticos. E a patifaria do camaleão consiste precisamente nisso: ele se adapta ao ambiente, mudando de cor, como, para ser repetitivo, a maioria de nossos políticos.

Mas não é ele o único a proceder assim. Falo do camaleão. O polvo também tem esse dom de adaptar-se ao ambiente em que se encontra. É cinza se está no meio de rochas, vermelho se circula por entre corais. Há insetos que parecem folhas de árvore; outros parecem galhos secos. E tudo isso com uma finalidade: disfarçar-se para poder dar o bote; ou para prevenir-se diante da possibilidade de um bote alheio. Não dá para não deixar de comparar com a política, é ou não é ?

Noto que a conversa apenas começou e a página já chegou ao fim. Eu pretendia falar ainda do tal "primata superior" e de algo que a Rita Lee certamente definiria com uma pergunta: "onde foi que o Roque errou ?"

Fica para outra semana.