Easy Rider
sexta-feira, 9 de novembro de 2007
Atualizado em 8 de novembro de 2007 14:12
Mais um fim de semana que se anuncia perdido. Por um dá cá aquela palha ele e a mulher discutindo em plena sexta-feira. "Pela tua moderníssima expressão dá para perceber a influência de tua mãe na educação do filho querido. Bah! Nem morta ela nos dá sossego!" Dentro dele acendeu a luz vermelha. Daí para a frente não haveria mais como travar uma troca de opiniões civilizada, pois quando a mulher resolve brigar com a sogra, melhor é sair de perto e deixar que as duas se entendam.
Ele sempre reconheceu que a dedicação de sua mãe, tentando ensinar isto e mais aquilo à futura nora não daria certo. "Ela é como uma filha para mim" dizia a velha. Por isso mesmo é que eu temo que isso não vá dar certo, mamãe. A senhora não prefere deixar que ela aprenda isso com a verdadeira mãe dela. "Quem, aquela ignorante ? Só porque faz empadinhas e vende na feira ela acha que tem condições de ensinar alguém a ser uma dona de casa ?" Deu no que deu. "Quando a senhora quiser vir ver seus netos, não se esqueça de me telefonar antes, para que eu possa programar a sua visita" observara-lhe a nora, já mãe do casal de filhos. Ela, de avó, passou a ser visita! Pode ? Um repentino infarto resolveu aquele constrangimento das duas. O único problema é que o espírito da velha agora fazia o que o corpo jamais se atrevera fazer: dormir na mesma cama do casal. Era o que ele dizia à esposa, quando a discussão enveredava pelos caminhos do passado. Tua mãe isto, tua mãe aquilo.
Crente em tudo o que havia ouvido nas sessões de terapia de casais, ele renunciara a muitos de seus divertimentos de solteiro, em nome da paz doméstica. Não apenas as saídas com as colegas de escritório, mas o futebol das quartas-feiras à noite, o cachimbo fumado na sala e, acima de tudo, os filmes de arte, em especial os do Ingmar. "Aquela chatice em branco e preto, falado em uma língua incompreensível, com uma lentidão que mais parece corrida de lesmas, tchê ? Tudo, menos isso!" E ele renunciou também às sessões do cinema de arte, distante do qual morava, ironicamente, a não mais de duas mordidas de maçã, como ele dizia, usando uma figura de metáfora que, certamente teria aprendido em algum filme visto lá. Resnais ? Clouzot ? Antonioni ?
Antes que a discussão degenerasse, saiu da boca dele um "vou espairecer um pouquinho". Acho bom, diz ela. Por que não vai matar saudade do teu Ingmar Bergman ? Aquele pulgueiro ali da esquina está repassando aquelas obras primas, agora que ele, felizmente, se passou desta para aquela onde deveria estar há muito tempo. Imagino o que deve ter sido a vida daquelas cinco viúvas que ele deixou. Ou dos nove filhos.
Era ofensa demais. Falar da mãe dele, tudo bem, pois sogra não é uma pessoa, é uma instituição, como aprendera com o Woody Allen, salvo engano. Falar da canastrice dele, sempre procurando por panos quentes nas crises quase diárias de TPM dela, ainda passava. Mas ofender o seu idolatrado Bergman era atrevimento demais.
Botou um boné na cabeça, sem saber bem por que, jogou dramaticamente um blazer sobre o ombro e lá foi, qual um Humphrey qualquer, a caminho do paraíso.
Ou porque a velocidade de seus passos estivesse acima daquela que ele normalmente empregava em suas caminhadas, ou porque os pensamentos brigavam entre si para terem prioridade em vir à tona, o fato é que quando ele deu por si já havia passado, há muito tempo, a estreita porta de entrada do tal cinema de arte. Que mania idiota a desses intelectuais, a imaginar que, por ser cinema de arte, tem de ficar escondido em algum beco inatingível!
E ali está ele longe de casa e longe também de seu almejado paraíso cinematográfico. Voltar ? Talvez não. Lembrou-se dos tempos de juventude, onde era comum ele e seus amigos andarem easy rider, tal como haviam feito o filho do Henry Fonda e o ainda quase desconhecido Jack Nicholson. Sem a motocicleta deles, é claro. Talvez fumando maconha no cemitério de vez em quando, como no filme. O fato é que mais de uma vez ele se dirigiu a esmo a um guichê, tomou ônibus ou trem sem qualquer programação prévia, e foi parar numa cidade que jamais havia pensado visitar. E teve surpresas incríveis. A mãe de seus filhos, por exemplo, ele conheceu em Carazinho, cidadezinha gaúcha de que ele jamais havia ouvido falar. Rigorosamente, naquele tempo, além de Porto Alegre, tudo o que se sabia do turismo gaúcho era a transviadônica, que ligaria Pelotas a Campinas, no Estado de São Paulo. Aí veio a liberação geral, e bicha passou a ser chamado de gay. E deu no que deu.
Pois ele estava agora simplesmente diante do aeroporto. Coisa de filme. Entrou e dirigiu-se ao primeiro balcão vago. "Uma passagem na classe mais xumbrega para o primeiro vôo que estiver para sair", proclamou, à maneira de um Edward G. Robinson, no Little Caesar.
"O senhor é um homem de sorte. Acaba de abrir uma vaga para Buenos Aires. Desistência de última hora". Ele olhou firme o rosto da moça, achando que estaria a caçoar dele. Chegou à conclusão de que ela falava sério. Não havia trazido bagagem nenhuma, mas o Peter Fonda também não tinha quando seguiu sem destino naquela inesquecível moto. Não tinha mais o pai que garantia suas loucuras, mas temos agora vários pais, enfiados nos escaninhos da carteira. É aventurar-se e aguardar os trinta dias do vencimento da conta. Aí vamos ver se dá para pagar tudo ou adiar o saldo, a juros astronômicos. Ele não quer voltar a ser o aventureiro que fora na juventude ? "Feito!"
Chegou à chamada capital portenha ainda a tempo de obter um bom quarto num daqueles hotéis que estão sendo erguidos da noite para o dia no Puerto Madero, cada um oferecendo diárias de final de semana mais baratas do que o outro. Pensando bem, uma esticada dessas até Camboriú ficaria pelo dobro do preço. Sem o bife de choriso com papas fritas.
Fosse pelo vinho nacional que tomou no jantar, fosse pelo seu estado de espírito, dormiu como não se lembrava de haver dormido nos últimos anos. Até a imagem da esposa lhe pareceu menos terrível quando tomava o café da manhã, ao som de Oblivion, de e com o Astor Piazzola. Saiu do hotel e foi ao caixa eletrônico fazer sua provisão de moeda local, pois nem para tudo o cartão de crédito dá um jeito, afinal de contas aquilo não era a Escandinávia, onde até banca de jornal aceita cartão de crédito. Primeira surpresa: nenhum dos dois cartões foi aceito pela maldita máquina, o que serviu para provar-lhe o estado lamentável em que se encontra o país vizinho. O jeito foi caminhar pelos parques locais, aproveitando para comprar entrada para o espetáculo anunciado no Tango Mio, à venda ali no shopping center de um dos parques, ao lado do cemitério célebre. Segunda surpresa: o aparelho do guichê da loja recusou ambos os cartões. Ele fez um discurso no portunhol do costume, mas a moça lamentava muitíssimo, pois quem mandava ali era a máquina, não ela. ¡El prójimo!
Novas tentativas de utilização dos cartões começaram a produzir-lhe um tremor nas pernas que prenunciavam um estado de pânico. Ele era suficientemente inteligente para concluir o que ocorrera. Havia dito à esposa que sairia para espairecer, sendo de presumir que, para isso, tivesse visto o Morangos Silvestres. Duas ou três horas depois estaria em casa, talvez ainda a tempo de tomar a sopa que ele mesmo poria no forno eletrônico. Quatro horas depois sem dar notícias, certamente a mulher teria concluído que o marido havia sido, na melhor das hipóteses, seqüestrado. Que fazer ? A primeira providência de alguém tão prático seria, como deve ter sido, comunicar o extravio às administradoras dos cartões, informando o extravio e, em conseqüência, obtendo o bloqueio de saques. Em seguida, contatos com hospitais e delegacias de polícia.
Ele foi a uma cabine telefônica e tentou, inutilmente, uma ligação a cobrar com sua casa. Ninguém atendia, a sugerir que a esposa havia ido para a casa de algum amigo comum, para orientar-se. Ou à casa de algum dos inúmeros desafetos dele, para comemorar. Preferiu ficar com a primeira hipótese.
O fato é que nosso Peter Fonda está em Buenos Aires sem um puto no bolso para gozar o fim de semana que, a tanto custo, se reservou. Nem restaurante, nem show de tango, nem recuerdos da feirinha de Santelmo para sua amada. Ele sempre poderá almoçar e jantar no hotel, mas, mais dia menos dia, terá de acertar as contas das diárias.
Sentado em frente ao simbólico obelisco, ele apenas se indaga o que George Raft faria se estivesse em seu lugar, como naquele filme em que.