"A gente vai contra a corrente
até não poder resistir,
na volta do barco é que sente
o quanto deixou de cumprir.
Faz tempo que a gente cultiva
a mais linda roseira que há,
mas eis que chega a roda-viva
e carrega a roseira pra lá"
Chico Buarque
Quando se ouve a mais alta autoridade do país declarar que quando entra num avião não pensa que o país por ele governado se esforça para formar pilotos competentes, nem pensa que quem fabricou aquele avião sabia o que estava fazendo, nem que o país que ele tem o dever de governar vem formando profissionais hábeis a promover a necessária manutenção das aeronaves que por aqui circulam, bem como profissionais capazes de controlar adequadamente os vôos dessas aeronaves, mas que, quando entra num avião, confia apenas na proteção de Deus, qual o sentimento que nos envolve ?
Há em cada um de nós, em grau maior ou menor, essa sensação de que estamos desempenhando um papel para o qual não nos havíamos preparado adequadamente. "A vida não tem rascunho", dizem os mais realistas, deixando de lado as convicções dos que acreditam que aqui voltamos vezes sem conta, com o propósito de nos aperfeiçoarmos, o que quer que a palavra aperfeiçoamento possa significar.
Lembro-me de um livro que li na minha distante juventude e que muito me ajudou na busca daquilo que, na falta de melhor palavra, se costuma chamar de humildade. O livro chamava-se Todos Nós somos Incompetentes, perdendo-se em algum recanto da memória o nome dos autores, que eram dois, ambos norte-americanos, especialistas em Administração de Empresas. O livro mostrava que um bom pedreiro não se conforma, geralmente, em ser apenas um bom pedreiro. Ele passa a querer ser um empresário, dito empreiteiro de obras, pretensão mais do que justa. O problema é que, muito embora ele saiba tudo sobre o ofício que aprimorou ao longo do tempo, nada entende de administração, o que, certamente, lhe será fatal no novo empreendimento, que exige mais do que habilidade no manejo do instrumental de que até então se valia. Resultado: nem a sociedade terá o excelente pedreiro que tinha, nem terá o empresário medíocre que irá à falência, mais dia menos dia.
O Brasil de hoje nos confirma a curiosa tese daqueles dois autores. De um tempo a esta parte, parece que a grande qualificação para alguém ser escolhido para exercer algum cargo importante no Brasil é não saber nada, ou quase nada, a respeito daquilo de que ele se vai ocupar no exercício profissional. E isso não é privilégio do Poder Executivo, nem do Poder Legislativo, onde os disparates ilustrativos dessa tese saltam aos olhos até de um cego de nascença.
Para ficarmos num campo onde a regra é a veneração e a religiosa superstição de que basta colocar uma veste negra sobre os ombros para adquirir-se a honestidade que se não tinha até ali, cultura que não precisou jamais ser comprovada e presumido espírito de dedicação ao mister profissional que escolheu, indaguemos: em que momento de sua formação profissional o juiz entra em contato com uma ciência chamada Psicologia ? Ele deverá ouvir pessoas, deverá avaliar aquilo que essas pessoas disserem e que lhe servirá de meio de convicção, deverá supor as conseqüências psicológicas das decisões que toma, especialmente quando examina os naturais conflitos decorrentes dos complicadíssimos laços familiares, de que se ocupam psicólogos e psicólogas. Para tanto, não é preciso conhecer Psicologia. Basta colocar a toga sobre os ombros e saber apor sua assinatura em uma decisão, sem se preocupar com os fundamentos do texto elaborado pelo perito, quando tem humildade de nomear um, cuja palavra terá valor de verdade absoluta.
"Quem entende de Psicologia é psicólogo, não juiz", dirá, sobranceiro, para justificar sua indiferença pela sorte alheia. Quem entende de cálculos matemáticos é o engenheiro, quem entende de computação é o assessor de sua excelência, quem entende da contabilidade da comarca é o escrivão. Se isso é assim, então para que se perde tempo e dinheiro com exames psicotécnicos ? A contradição é flagrante. A Psicologia é importante quando se cuida de abrir a porta ao candidato; passa a não ter importância alguma depois que ele adentra o sagrado templo de Têmis. Ser perito em matemática, psicologia, contabilidade ou seja lá que matéria for é uma coisa; ter por essas matérias ignorância olímpica, transferindo a terceiros, ou seja, ao perito, a incumbência de decidir a causa, visto não estar minimamente apetrechado para avaliar as impugnações feitas pelo assistente pericial, como se vê diuturnamente, é coisa diversa.
Por outro lado, em que momento de sua formação profissional o futuro juiz entra em contato com a Ciência da Administração ? Ele deve administrar pessoas e coisas, canalizando estas e o serviço daquelas para que se chegue àquilo que os técnicos em O & M chamam de "ótimo possível", no sentido de que uma sucessão de atos coerentes e conseqüentes leve sua atividade e daqueles por ele orientados, o mais cedo possível, a um resultado prático, a partir de um estímulo inicial promovido por um terceiro interessado no tal resultado da atividade referida. Como fazer isso sem conhecimento de Organização e Método, que, bem ou mal, é ministrado em cursos de Administração ? Simples: colocando uma toga sobre os ombros do recém-ingresso. Pronto, a ciência infusa entra-lhe pelos poros e o membro da Magistratura não precisa de mestres, nem de livros, nem de estudo para que aquele resultado seja atingido. Curia novit omnes scientias deveria ser a frase famosa. Se, não poucas vezes, nem a tal jura a Curia se preocupa em conhecer, que dizer tudo o mais que vem abaixo dela, as tais scientiæ ancillæ ?
Quando se verifica a situação inacreditável a que chegou o nosso Congresso Nacional, a ponto de não sabermos se ainda merece ter o nome escrito em maiúsculas, entidade que, no dizer de certo candidato, teria, não 300 membros dispostos a morrer pela pátria, como os espartanos célebres, mas 300 picaretas, generalizamos a crítica: ser político é ser sinônimo de ser desonesto. Ou seja, valemo-nos de uma cômoda sinédoque para não termos o trabalho de tentar separar o joio do trigo. Quando os escândalos batem na porta da circunspecta porta dos fóruns, tomar-se o todo por sua parte podre passa a ser "campanha de desmoralização de uma instituição respeitável", guiada, evidentemente, por "interesses escusos", primos, por certo, das inidentificáveis forças ocultas invocadas em outro momento de nossa História recente. Em último caso, traz-se o oportuno escudo: "os desmandos envolvem minoria insignificante de seus membros". Ora, para sabermos se o número dos magistrados e das magistradas que não respeitam seus mais elementares deveres profissionais compreende a minoria ou a maioria de seus membros, necessário fora que se expusessem, para consulta pública, o teor das denúncias feitas contra eles, as provas colhidas a respeito da procedência ou improcedência delas e, acima de tudo, o teor da decisão que acolheu ou rejeitou tais denúncias, principalmente quando a punição consistir na incrível e convidativa aposentadoria com vencimentos integrais ou, em caso de impossibilidade dessa por ausência do chamado lapso temporal, a colocação em disponibilidade de sua excelência o infrator, com vencimentos proporcionais ao seu tempo de desmandos no cargo que desonrou, com a risível e infiscalizável restrição de não poder advogar.
Veja-se a resistência que se fez e ainda se faz à existência de um órgão neutro para fiscalizar o Judiciário, como se fez e se faz ao desbaratamento do nepotismo e à elevação ilegal dos próprios vencimentos para concluir-se que aquela transparência jamais será ao menos objeto de cogitação. E tudo isso In Nome del Popolo Italiano, como ironizou Dino Risi na película que dirigiu nos idos de 1971, a respeito da Magistratura do seu país.
Uma coisa, porém, é certa: se é para deixarmos tudo nas mãos de Deus, como disse recentemente a suma autoridade deste país, então é para perguntamos por que haveremos de pagar o que pagamos para termos um simulacro de governo, seja ao serem elaboradas leis, seja ao ser promovida sua execução, seja ao ser fiscalizado o seu cumprimento, a partir de casos concretos. Melhor será voltarmos à Idade Média, escolhermos alguém que seja a representação física daquele invocado Deus e mandarmos as demais autoridades constituídas para aquele recanto a que destinamos as pessoas imerecedoras de nosso respeito.