Cada um na sua
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
Atualizado em 16 de agosto de 2007 14:22
"Brasil ! Meu Brasil brasileiro, meu mulato rizoneiro, vou cantar-te nos meus versos !" Francisco Alves, treslendo os versos escritos por Ari Barroso, onde ele havia incluído um ininteligível "inzoneiro"
"Quem é você que não sabe o que diz ?"
Noel Rosa
O presidente da Infraero deita falação sobre as dificuldades em preparar um pepino, assunto que ele, como militar, parece conhecer como poucos. Não foram eles que inventaram a dança da garrafa ? O elemento presumidamente subversivo tinha de dançar nu, agachado sobre a garrafa posta em pé, bem abaixo do seu ânus. Quando ele se cansasse, já viu. Falando do tal presidente, logo em seguida à sua peroração, a TV exibe uma cozinheira dizendo que pepino, oficialmente, só serve para salada. E é facílimo de preparar, mostra ela, que não se atreve, aliás, a discorrer sobre os problemas da aviação.
Por falar em atrevimentos, a cantora Mônica Salmaso vem de lançar um belo CD com composições do Chico Buarque de Hollanda, acompanhada pelo excelente conjunto Pau Brasil, que simplesmente reescreve todos os arranjos das belíssimas melodias do nosso compositor maior. É difícil decidir se o que mais encanta o ouvinte é a voz intimista da cantora ou a inspiração e o virtuosismo dos músicos.
O nosso querido Chico, compositor de quem sou declaradamente uma das incontáveis viúvas, agora que ele se passou para o lado do Baudelaire, sempre contou com essa cumplicidade de seus intérpretes e seus ouvintes. Ele não escrevia letras para si, mas para provocar a reação de quem viesse a ter a felicidade de ouvir ou cantar suas músicas. Sei que alguns ouvintes preferem Cartola, ou Noel, ou Adoniran. Respeito, mesmo porque de gustibus et compositoribus non disputandur.
Em uma dessas letras ele fala de carne posta na mesa. Fico a indagar-me: quantos daqueles que ouviram essa música terão atentado para a intenção do autor ao colocar ali a palavra posta ? Sabemos que, como adjetivo, ela é o particípio passado do verbo pôr. Mas sabemos também que, como substantivo (ainda prefiro essa palavra, ao inexpressivo e multívoco nome) ela significa pedaço de carne. Ou seja, a letra pretende convidar-nos a fazer a riquíssima ligação: posta de carne posta na mesa. Eis o que é um artista.
E quantas dessas mesmas pessoas terão atinado para as letras complementares que ele produziu ?
Explico: são duas músicas distintas que têm, no entanto, um encadeamento evidente, como se uma descrevesse fatos posteriores aos fatos contidos na letra anterior.
Vamos a elas. Inicialmente, ele geme:
"Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim:
não me valeu!
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim;
o resto é teu.
Trocando em miúdos, podes guardar
as sobras de tudo que chamam lar,
as sobras de tudo que fomos nós:
as manchas do amor em nossos lençóis,
as nossas melhores lembranças.
Aquela esperança de tudo se acertar ?
Pode esquecer.
Aquela aliança você pode empenhar
ou derreter.
Eu bato o portão, sem fazer alarde,
eu pego a carteira de identidade,
uma saideira e muita saudade,
e a leve impressão de que já vou tarde."
Aí, diz a moça, enlouquecia:
"Quando olhaste bem nos olhos meus
e o teu olhar era de adeus
juro que não acreditei,
eu te estranhei
me debrucei sobre teu corpo
e duvidei."
Tempos depois vem a mesma Bethânia (a Gal Costa, embora aquela voz extraordinária, é apenas uma cantora; a Maria Bethânia é uma intérprete) e nos atira no rosto:
"Quando você me deixou, meu bem,
Me disse pra eu ser feliz e passar bem.
Quis morrer de ciúme,
quase enlouqueci,
mas depois, como era de costume,
obedeci.
Quando você me quiser rever,
já vai me encontrar refeita, pode crer.
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
ao sentir que sem você eu passo bem demais.
E que venho até remoçando,
me pego cantando,
sem mais nem porquê.
E tantas águas rolaram,
quantos homens me amaram
bem mais e melhor que você!
Quando você precisar de mim
'cê sabe que a casa é sempre sua, venha, sim.
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz,
quero ver como suporta me ver tão feliz."
É isso um acerto de contas, que sugere uma conversa íntima, talvez num canto de um bar, em voz baixa.
Pois não é que veio um tal de Emílio Santiago, que o Cauby considera o melhor cantor brasileiro da atualidade, e se permitiu corrigir essa belíssima letra, cantando "você sabe" onde a intimidade da cena exigia o carinhoso "'cê' sabe" ! Nem o presidente da Infraero chegaria a tanto !
Eis, aliás, um reincidente específico. Falo do Santiago.
O compositor alagoano Djavan brindou-nos com esta definição do amor:
"O amor é um grande laço,
um passo pr'uma armadilha;
um lobo correndo em circo
pra alimentar a matilha.
Comparo sua chegada
com a fuga de uma ilha:
tanto engorda quanto mata,
feito desgosto de filha."
Aí está um poema com magníficas redondilhas. Pois não é que o mesmo Emílio Santiago resolveu corrigir isso para "um lobo correndo em círculos" ? E como fica a redondilha, meu caro professor ? Um tanto estropiada, concorda ?
Que circo seja uma corruptela de círculo todos nós sabemos. Isso decorre da forma daquela construção, até porque ninguém pensaria num circo quadrado ou retangular. Mas daí a emiliosantiagar (se o Caetano inventou o djavaniar, por que não eu ?) a letra do colega, comprometendo a beleza do verso, vai um salto triplo, sem rede de proteção. Não é tanto uma questão de conhecimento de métrica, mas de sensibilidade.
Dizem que o pintor grego Apeles fora encarregado de fazer um retrato de Alexandre Magno, que se tornou imperador da Macedônia aos 20 anos de idade. Ou porque fosse perfeccionista, ou porque temesse as iras do jovem imperador, Apeles solicitou a assessoria de um sapateiro que lhe dissesse se as sandálias imperiais estavam bem pintadas. O tal sapateiro (sutor, em latim, pois o caso nos é contado por Plínio, o moço), depois de haver cumprido a honrosa missão, para que a sandália (crepida) imperial fosse retratada fielmente, pôs-se a sugerir algumas correções em outros trechos da tal pintura. "Aquela manga ali poderia ser mais bufante. Aquele saiote está muito curto. Aquela outra." Ao que o nosso Apeles teve de pôr um basta no atrevimento do Emilus Santiagus (como Plínio não nos diz o nome do sapateiro, valha nossa imaginação), exclamando a frase célebre: Ne sutor ultra crepidam! Não vá o sapateiro além das chinelas.
O Emílio Santiago, seguramente, jamais leu Plínio. E o presidente da Infraero, agora elevado à categoria de ex, jamais imaginou que, segundo os dicionários, pepineira não é apenas a planta que produz pepinos. É também "fonte de proventos sem maior trabalho, mamata". Coisa que ele agora deixou de ter.