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In illo tempore

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Atualizado em 26 de julho de 2007 10:01

 

"Antigamente é um tempo que se foi, mas que se recusa a ir de vez e fica dentro da gente, atormentando o coração com saudade".

(Rubem Alves)

As Memórias do Jung têm inúmeras vantagens. Uma delas, claro que não a principal, é mostrar-nos que ele, mesmo vindo a ser o gênio que foi, era um homem comum, tinha essas esquisitices que todos nós temos mas procuramos disfarçar, e um precoce juízo crítico. Nós, que muitas vezes pensamos que somente nós somos assim tão inseguros e desajeitados, tão incompreendidos, tão gauche, como diria o Drummond, temos ali motivo de consolo. Suas referências a seus pais não são as de um filho devotado, como as de tantos desmemoriados que não se lembram dos tempos difíceis da infância, dos castigos imerecidos, da incompreensão e da prepotência que, não poucas vezes, caracteriza o relacionamento pais/filhos, preferindo guardar na memória apenas os bons momentos, que todos nós, tanto quanto o Carl Gustav, também tivemos. Ele fala dos momentos doces mas também dos momentos amargos. Isso se chama honestidade intelectual.

Falo aqui de uma coisa que ele e muitos de nós conheceu muito bem: a pobreza, e de como isso se refletiu na escolha de nossa vida profissional e em nosso estilo de vida. Dele e minha.

Minha mãe era uma jovem bonita que, vindo da Itália ainda menina, cresceu e se casou na Mooca. Seu marido, um garboso policial civil, tinha a mania de ser honesto. Com isso, só conseguiu comprar um terreno, financiado a perder de vista, num lugar que a italianada da Mooca chamava de Cafundós do Judas. Era, na verdade, o incipiente bairro do Alto de Santana, além do qual acabava o mundo, tanto que lá naqueles confins haviam construído um hospital para doentes de fogo selvagem, de que, de vez em quando, segundo se dizia, fugiam alguns para chupar o sangue das crianças e nisso buscar a cura. E foi para lá que se mudou nossa família, composta, na ocasião, do casal e dois filhos. Logo viriam mais dois, completando-se a ninhada. Mantê-los com o que ele ganhava na Guarda Civil (naquele tempo, havia a Força Pública, de uniforme cáqui, rebatizada Polícia Militar depois de 1964, e a Guarda Civil, de uniforme azul, que era estadual, coisa que o Jânio veio a ressuscitar, a nível municipal, tempos depois) era quase impossível. Daí as costuras a que se dedicava minha mãe para reforçar o orçamento do lar.

A rua Antonio de Souza só veio a conhecer asfalto quando o segundo dos quatro filhos já ingressava na puberdade. Para irmos ao centro da cidade caminhávamos vários quarteirões que, nos dias de chuva, era um lamaçal só. Minha irmã mais velha, quando ia para o trabalho, levava um par de sapatos numa sacola e, chegando à Rua Voluntários da Pátria, onde se tomava o ônibus 45, deixava os sapatos enlameados numa moita de capim, ao pé da caixa d'água que ainda lá existe, e subia para o ônibus com os sapatos limpos. À tarde, quando voltava do trabalho, invertia a operação.

O ponto final do 45 era no largo de Santa Ifigênia, onde havia um prédio que chamava a atenção de todos nós: o edifício Gazeta, onde havia um letreiro luminoso, com as letras correndo da direita para a esquerda, dando-nos as manchetes dos jornais ali impressos. Ali também funcionava a Rádio Gazeta, que tinha, dentre outros, um locutor de voz inconfundível. Seu nome: Walter Ceneviva, hoje um jurista respeitável.

Eu, como o Jung, tinha lá minhas veleidades profissionais. Sem saber bem o que era isso, pendia para a Arquitetura, que, naquela época, era ramo da Engenharia. Entretanto, por escolha de meu pai, preparei-me para o vestibular de Direito da USP, onde o ensino era gratuito e não havia necessidade do período integral da Politécnica. Eu poderia, assim, trabalhar meio período e contribuir para meu sustento. Ou USP ou nada. Aliás, eu só fizera meus estudos ginasianos porque meu pai conseguira uma bolsa de estudos para mim no Colégio Salete, nímia gentileza do professor Hélvio Bugano, como disse eu em comovido discurso muitos anos depois, já juiz.

Leiamos a esse respeito o Jung: "Foi preciso então enfrentar o penoso problema de arranjar o dinheiro para os estudos. Meu pai podia fornecê-lo apenas em parte. Solicitou uma bolsa junto à universidade e, para minha vergonha, a obtive. Esse sentimento prendia-se menos ao fato de que nossa pobreza seria assim publicamente confirmada do que à convicção de que todos os superiores, isto é, os competentes não me viam com bons olhos".

Eu, certamente muito superior espiritualmente ao escritor suíço, ou mais conformado do que ele com o padrão de vida que ambos levávamos, jamais tive vergonha de minha pobreza. Ao menos conscientemente.

Havia naquela ocasião dois cursos preparatórios: o do Castelões, onde se notabilizaria o Geraldo Roberto de Souza, que nos precederia na magistratura, e o do Azevedinho. Este era um lusitano de não mais de metro e meio de altura, que praticamente dava todas as aulas. Conhecia literatura como gente grande. Era autor de uns livros de latim, num dos quais havia uma versão feita por ele, que começava assim: "Audierunt Ipirangæ ripæ placidæ ..." Era o nosso hino nacional. Eu sempre fora bom aluno, um CDF, como então se chamavam aqueles que com certeza tinham as nádegas de ferro para ficarem sentados o dia todo, como eu, debruçado sobre os livros.

No cursinho conheci um mulatinho tímido, vindo do Interior, o Didi. Este me encantava pela voz aveludada que tinha, com a qual vivia cantarolando alguns boleros, o que me causava inveja, pois eu tinha uma remota vocação para a música. Seu nome era Aldimir Ribeiro. Faltava muito às aulas porque estava recebendo convites para apresentar-se em boatezinhas do centro da cidade. E lá ia ele, a conhecer gente nova. Uma dessas pessoas chamava-se Maysa Matarazzo, esposa de um ricaço, que não via com bons olhos o pendor dela pela música. Ela compunha, e cantava nas festas familiares suas músicas, mas a família do marido se opunha àquilo. Tinha um rosto triste e uns olhos verdes simplesmente incríveis, como vim a verificar muito tempo depois, quando o Didi já se chamava Almir Ribeiro. Sua bela voz e aquelas companhias acabaram por retirá-lo definitivamente de nosso convívio no Azevedinho, tanto quanto fizeram a Maysa romper com o Matarazzo. O fato é que ele gravou dois ou três discos, apareceu em filme da Atlântida e em programas da engatinhante televisão e foi convidado para apresentar-se em um cassino, em Punta del Este. O moço interiorano, não habituado com o Oceano Atlântico, certo dia nadou além dos seus limites pessoais e não voltou vivo à praia uruguaia nem a seu país natal. Aquilo me mostrou que o sucesso também tem seu preço.

Concluído o cursinho, prestei o vestibular e fui aprovado, principalmente por causa de uma armadilha que montei para o examinador de latim. Depois que eu traduzi o texto, ele me mandou classificar determinada palavra. Eu não só classifiquei, como acrescentei, malandramente: "Essa é uma das inúmeras preposições que exigem o acusativo". E quais são as demais ? E eu despejei a lista que trazia na ponta da língua.

Um ou dois dias depois de sair o resultado, recebo um telefonema impensável. Era o Azevedinho, que me convidava para lecionar em seu curso preparatório. Ele vinha prestando atenção em meu desempenho nas aulas e agora, com aquele terceiro lugar no vestibular, ele me queria para seu auxiliar. Inseguro como um Carlos Gustavo qualquer, declinei do amável convite, como se diz, com uma resposta educada: "É uma honra ser lembrado pelo senhor, professor, mas fica para outra ocasião". E ele, mais Azevedinho do que nunca, batendo o telefone, deseducadamente: "Não haverá outra ocasião". E não houve, de fato, jamais nunca.

Hoje, passados mais de 50 anos, concluo que aquela grosseria muito contribuiu para meu auto-conhecimento. Fui aprendendo que, como toda gente, eu não era um bloco de coerência. Eu poderia dizer, como Jung, que fui tomando consciência de que "havia em mim duas pessoas diferentes: uma delas era o menino de colégio que se caracterizava pela insegurança; o outro era um homem importante, de grande autoridade moral", que foi abrindo o seu caminho com muito esforço, tanto quanto o genial suíço.

E com Jung aprendi que modéstia é coisa de quem finge ser menos do que sabe que realmente é.