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Mistérios Brasilienses

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Atualizado em 19 de julho de 2007 15:59

 

"Se todos os homens rivalizassem em nobreza e se esforçassem por realizar as ações mais nobres, então todas as necessidades comuns seriam satisfeitas e cada indivíduo possuiria os maiores bens, se na verdade a virtude for de tal valor".

(Aristóteles)

Quando resolveram criar aquela baía de Guanabara artificial lá em Brasília, para que os cariocas não sentissem saudade dos bons tempos do Palácio do Catete e arredores, eu fui contra. Não que eu mandasse alguma coisa, mas o brasileiro tem essa mania de achar que entende de tudo e eu manifestei essa opinião, não sei se foi ao Zé Carlos Bettiol, que nos havia solenemente tonsurado no trote de ingresso na faculdade, coisa que o Campbell chama de "rito de passagem" e que alguns ignorantes querem proibir, ou ao Roger Vadim da Costa Arsky, que já usava aquele bigode de lorde inglês que ostenta até hoje e ainda não havia dirigido o Barbarella.

Com todo o respeito, meus caros, paira no ar uma suspeita de que isso não vai dar certo. Essa água toda parada ali por anos e anos, mais dia menos dia vai começar a emanar alguns eflúvios cujas conseqüências ninguém pode prever. Eflúvios era uma palavra que eles, evidentemente, não conheciam. Ambos respeitavam minha cultura, pois, quem era o misterioso Shelley Keats, responsável por uma página humorística em um dos jornais da faculdade ? Pois é. Calaram-se respeitosamente, mas, lá no fundo, não tinham qualquer dúvida. "Se esse cara algum dia for à Itália vai tentar aprumar a torre de Piza". E se mandaram para a capital federal.

Deu no que deu. Não a ida deles, mas a construção do tal lago. O brinquedinho milionário do Oscar e do Lúcio, em cujo bigode certamente o Vadim se havia inspirado, era, como todo brinquedo novo, uma beleza. Aquelas esculturas plantadas naquele chão que outrora fora não sei bem quê, como disse o Juscelino no dia da inauguração, convidavam ao pasmo. Ruas sem semáforo, esse nome mais idiota inventado pelos paulistas para denominar sinaleira de trânsito, isso sim é que é nome correto, como dizem fora deste nosso Estado, a sugerir cena de filme colorido norte-americano, com Doris Day e Rock Hudson, aquele belíssimo galã pelo qual as moçoilas. Deixa pra lá. Em derredor, aquela exuberante falta de vegetação digna de tal nome. E algumas siriemas pastando por ali, quando não estavam competindo quem gritava mais alto, incomodando um grupo de violeiros que o Jusça havia trazido especialmente para lhe cantar o "como pode o peixe frito ser comido sem farinha ?" Música que ele adorava. Tanto quanto bailar e viajar de avião.

As pessoas foram chegando, vindas lá da seca mais acima, e cadê hotel pra elas ? Ou casa ? Ou conjunto residencial ? Ou emprego ? Ou ? O resultado foi o que qualquer urbanista minimamente esclarecido já previria: cidades de lata, como diria o lusitano Boaventura Santos, que entende disso como gente grande e que se sente ofendido quando o chamam de jurista. Faz ele muito bem!

Aí começaram a aparecer os governantes locais antenados com os tempos pós-modernos, como eles costumam dizer em seus discursos ininteligíveis. Em lugar de fluxo rápido de veículos, coisa mais absurda, melhor fazer filas e mais filas diante de sinaleiras, se é que é assim que se chamam aqueles semáforos brasilienses. O Lúcio Costa disse que depois dessa nunca mais poria seus poéticos pés naquela cidade. O Oscar, com a pragmaticidade dos comunistas autênticos, como o grande líder e também macróbio Luiz Carlos Prestes, engoliu aquele atentado à obra de que era co-autor e fez de conta que a ofensa não era com ele. Continuou a pegar a pilot, fazer dois ou três risquinhos curvos numa folha branca de papel, que envia a seus auxiliares, que vão morrendo um depois do outro antes dele, que é eterno, com a recomendação modesta: "fiat!"

E deu no que deu.

Trazer aqui a biografia das figuras que, por lá passando, mereceriam ter busto eternizado em algum monte Rushmore caboclo, seria encher o restante do espaço com nome e mais nomes. Melhor escolher algumas das figuras mais significativas, pinçando nos três poderes da praça, que comprovarão, com suas biografias, aquela tese que eu sustentara nos idos de 50.

Como seria o governo do Jânio sem os eflúvios do lago Paranoá ? Você acha que ele iria sair desfilando com aquela fantasia de soldado indiano, só faltava bermuda e meia de lã até o joelho ? E ainda nos convencendo de que aquilo era roupa adequada ao clima brasileiro ? Que diriam a isso os gaúchos que, salvo erro meu, naquele tempo ainda pertenciam ao Brasil ? Proibiria biquíni em desfile de miss ? Renunciaria e depois renunciaria à renúncia ?

E o Jango, que entendia tanto de política como o Mané Garrincha entendia de geografia ? Felizmente ele tinha um cunhado que, para o bem da pátria, revogou o Código Civil elaborado pelo ignorante Rui Barbosa de Oliveira (você sabia que ele era tão Oliveira quanto o Juscelino ?), que, fosse mais dedicado aos estudos, saberia que "cunhado não é parente". Parentesco por afinidade e outras besteiras é coisa de gente que não tem o que fazer. Parente é pai, mãe e filho. O resto é o resto.

E o Collor, gente, como ele costumava exclamar ? Um nome que vale por uma biografia. Ou, se preferirem, um nome que dispensa biografia.

Só pode ser efeito dos gases do tal lago.

Pense nas explicações do Renan para aquela história da pensão da filha. Se algum dos meus filhos me apresentasse o boletim escolar rasurado, ele levaria uma sova daquelas. Não por haver rasurado o boletim, pois era direito dele fazer o que bem entendia com o que era dele. Nem pelas notas baixas, criança faz dessas besteiras mesmo. Mas por tentar me fazer de bobo.

E veio o Roriz, com aquele discurso que nos custou alguns lencinhos de papel e que, depois dele, voltou para os braços do povo. De onde, aliás, não deveria ter saído.

E, last but not the least, como diria aquele recentíssimo ministro do Lulla, que parece o Clodovil antes da plástica, vem o Paulo Medina, primus gerrmanus inter pares.

Vejamos: juiz não dirige automóvel oficial, dirige ? Trabalhinho mais insignificante esse, sô ! Juiz não perde tempo abrindo livro de doutrina e de jurisprudência, perde ? Para isso basta contratar parentes dos colegas, mesmo porque os colegas contratarão nossos parentes, é ou não é ? Juiz não perde seu precioso tempo digitando sentenças e acórdãos, perde ? Lá estão novos parentes dos colegas, ditos assessores, para esse serviço braçal, ou, pelo menos, digital. E juiz também não compulsa autos, segundo declaração do ex-presidente da Associação de Magistrados Brasileiro, gestão 1996/1997.

Segundo supúnhamos até aqui, em nossa cândida ignorância, se alguém impetra uma ordem de Habeas Corpus, alegando que tal juiz de tal comarca não se houve com a prudência e sabedoria habituais, como dizem os incensadores, ao indeferir pedido de concessão de liberdade provisória a um réu, o mínimo que o relator teria a fazer, ao reformar tal sentença, seria examinar os fundamentos da decisão que, segundo o writ, violou o constitucional direito do paciente de vir, ir embora para o Exterior, e ali ficar, e onde viverá para sempre, graças ao dinheiro acumulado com os crimes por ele cometidos, parcialmente repartido com seus advogados e quejandos. Depois dessa leitura, segundo se supunha, caber-lhe-ia ao relator a análise crítica dos fundamentos daquela decisão. Aí ele chamaria o auxiliar e diria: "veja meus votos anteriores, nos quais já me manifestei sobre essa surradíssima tese, vezes e vezes, e faça as adaptações necessárias ao presente caso. OK ?"

Pois essa jurisprudência acaba de ser profundamente alterada. Agora é o assessor quem lê os fundamentos da decisão recorrida e dá disso notícia ao relator, quando dá. Se o assessor, por esses esquecimentos a que todos nós, juizes ou não, estamos sujeitos, não resume adequadamente a decisão que o relator deveria, em tempos pretéritos, ter lido, é chamá-lo ao gabinete e dizer: "Rua! Dê lembranças a teu pai". Caso encerrado, dirão seus compreensivos pares.

Ficou no ar apenas uma dúvida: se o relator não faz a pesquisa, não datilografa o acórdão, não examina os autos, qual a função dele ? Pergunta mais descabida. A função dele é apor a sua valiosíssima assinatura no acórdão, coisa que exige tempo e concentração, e depois ler, durante a sessão, aquilo tudo que o auxiliar, que não ganha nem um terço do que sua excelência percebe, havia feito. Percebeu ? Claro que talvez já se pense em contratar um porta-voz para cada ministro, o que pouparia sua excelência desse monótono trabalho.

É o que se dessume da mais recente lição de um dos homens que tem sua carrancuda fotografia no hall da fama da Associação dos Magistrados Brasileiros, aquela conspícua entidade que resolveu vir a público para lutar pela moralização do serviço público.

Perda de tempo, meu caro Collaço. Tudo isso só pode ser efeito dos tais eflúvios da "baía fluvial", tradução do nome do tal lago. Melhor esvaziar o Paranoá.