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Rio

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Atualizado em 17 de maio de 2007 08:56

 

"Rua Nascimento Silva, 107, eu saio correndo do pivete, tentando alcançar o elevador."

(Tom Jobim, parodiando a si próprio)

Não costumo ir muito ao Rio de Janeiro, Fevereiro e Março. Não que não tenha lá vários amigos, que me receberiam com os braços mais abertos do que os do Cristo Redentor, que, pelo jeito, logo logo os estará levantando para o alto. O Sérgio Couto, por exemplo, que me vive oferecendo sua casa no Rio dais Oxtras, onde passei já um reveillon, com direito a ser noticiado na coluna do Ibrahim Sued. Eu e certo Ministro do Supremo Tribunal e sua simpática e magistral esposa, que lhe são vizinhos do amigo Sérgio.

Há também o Geraldo Prado, doutor em Direito, com direito a site na Internet e livros e mais livros jurídicos publicados e que tem uma particularidade que não sei se é do seu agrado lá dele: o homem é sósia perfeito do Romário, rosto e resto. Imagino um futebolista fanático entrando na sala de audiências para depor e dando com o homem atrás daquela mesa lá no fundo. "Sai já daí, baixinho, antes que o juiz chegue. Já pensou se ele te pega aí, pondo tua prosaica bunda nessa curul excelsa? Esse negócio dos mil gols mexeu com teu juízo!" E agarra o doutor Geraldinho pelo colarinho, supondo que é o outro baixinho que ali está. Sorte dele que o doutor Prado é moço magnânimo e entende o qüiproquó. Na certa se limitaria a ajeitar a gravata e dizer aos seguranças que está tudo bem.

E tenho também ali na mesma cidade como amigo aquele negrão forte, de cabeça raspada, que mereceria o apelido de Bola Sete, não tivesse ele sido patenteado por aquele violonista que a Carmen Miranda levou lá para os states e que se tornou um ícone dos entendidos em música. Djalma Andrade era o nome dele e o guitarrista Carlos Santana não deixou por menos: nosso Bola Sete foi seu grande mestre. O Dizzy Gillespie que o diga. Falo do Paulo Rangel, nome de ator de teatro, reconheço. Vinha ele pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, dirigindo seu BMW, quando foi interceptado gentilmente por um grupo de policiais militares, com direito a metralhadora apontada para o rosto do negrão e mais os tradicionais "já pra fora, nego safado, mãos na nuca, pernas separadas e cara no muro". Quando o sargento conseguiu ler a cédula de identidade do Paulo, não sabia o que fazer. Dispensou a tropa e abriu a porta do BMW. "Quer que engraxe os seus sapatos, doutor?". Não precisava. Os amigos que ouvimos a narrativa esperávamos que o doutor Rangel fosse agora relatar o esporro que havia dado nos homens. Coisa nenhuma. "Eles estão cansados de saber que um negrão elegante como eu num carrão desses só pode ser jogador de futebol, artista de TV ou traficante. Como não conhecem artista nem jogador com minha cara..." E o promotor de justiça ri, como sabem rir os espíritos superiores. Acho que ele deveria incluir a história na décima edição do seu Direito Processual Penal.

Pois se aceito o convite de um deles, ganho dois inimigos. Pelo menos. Melhor ir ao hotel que um certo português instalou ali na avenida Atlântica, como me haviam recomendado. Sendo de português, só pode ser pensão, comento com a Maria Helena. E certamente com a bandeira do Vasco hasteada no saguão de entrada. Maldito preconceito. O tal hotel tem todas as estrelas que merece e mais algumas que eu acrescentaria depois de comer o bacalhau que eles me prepararam, com direito a um naco de queijo da Serra da Estrela na sobremesa. Nem em Portugal comi tal iguaria. Na Noruega, então, nem falar, pois, o Berge Furre, a Elisabeth e o Terje que me perdoem, mas ali eles só sabem fazer uma sopinha chamada Bacalao, que mais parece regime alimentar pós-operatório servido a paciente do SUS. Só não digo o nome do hotel porque, tal como o meu amigo Juca Kfouri, sou inimigo de merchandising, inda mais de graça. Quando for ao Rio, porém, abra bem os olhos e verá o nome dele, por sinal enorme, na fachada do prédio, entre o Copacabana Palace e o Othon, que lhe não chegam às tamancas, pá.

Ao preencher a ficha de entrada, noto sobre o balcão a notícia de uma excursão que será feita ao Maracanã no dia seguinte, para o final game of the carioca soccer's championship. Boto meu nome na lista de gringos e no dia seguinte lá estou eu com minha bermuda cheia de bolsos e um par de papetes, respondendo em inglês o que o chefe da equipe de segurança me pergunta. Sim, os hóspedes seremos levados em um carro blindado, com direito a uns tantos seguranças uniformizados, cada um com um walkie-talkie, coisa de operação bélica. São três vans, que seguem em fila indiana pelas ruas e avenidas até o estádio Mário Filho. Uma hora e meia depois lá estamos diante da porta de entrada. Forma-se um corredor polonês, por onde os gringos, eu inclusive, vamos passando, sem sermos bolinados pelos policiais civis que nos deixam passar sem aquela gentileza reservada aos suspeitos nativos. O chefe dos nossos guarda-costas vai mostrando os bilhetes ao catraqueiro e cada um de nós vai recebendo autorização para adentrar aquele templo do futebol. Nova fila indiana e assim vamos indo até o setor vip, onde nos aguardam as poltronas que ocuparemos durante a pugna. Sinto-me retornado aos meus tempos de jardim da infância ou remetido aos tempos futuros do Alzheimer que nos aguada a todos. Até quando falo em ir ao banheiro lá está meu guarda-costas levando-me até o rest room e trazendo-me de volta são e salvo a meu reservado local de iminente desfrute futebolístico.

Ganhou quem venceu e perdeu quem foi derrotado, como diria o sábio Abelardo Barbosa. Nosso guia nos leva de volta ao nosso fortim motorizado, com os cuidados de praxe, no qual retornamos ao hotel, sempre escoltados. O celular do meu guarda-costas toca. É a mulher dele perguntando como vão as coisas. "Até aqui sem novidades. Vamos ver quando entrarmos na linha vermelha. Espero em Deus que cheguemos sãos e salvos ao hotel" diz ele, com toda naturalidade. Os demais gringos não estão nem aí para a preocupação do homem.

Logo mais à noite mato um velho desejo: ouvir um grupo de chorinho sob os arcos da Lapa. O gentil gerente do hotel aconselha a Maria Helena a abrir mão de brincos, colares, pulseiras e outros adereços, desses sem os quais mulher se sente nua. E lá vamos de táxi até a Lapa dos Capoeiras, como cantava o Nelson, o motorista passando como pode por aquelas mesinhas que ocupam os bares, as calçadas e parte do leito carroçável. "Daqui a pouco nem este espaço sobrará" diz ele. "Mas pelo menos, com tanta gente, o local é seguro" observa a ingênua Maria Helena. "Minha mulher foi assaltada naquela esquina ali ontem à noite. E ninguém fez nada para impedir. Aqui é cada um pra si" suspira o homem.

Descemos do táxi já ouvindo o som da flauta. Dá para perceber o cavaquinho, o pandeiro e o violão de sete cordas. As parcas deixaram uma mesa vazia para nós dois, bem diante do conjunto musical. Para surpresa do meu preconceito, quem toca a flauta não é um negro beiçudo, um Pixinguinha redivivo. É uma bela moça, com não mais de 21 anos, cabelos lisos e rosto ariano de artista francesa. Ela estuda música na UERJ, segundo nos conta num intervalo, fazendo um bico nos barzinhos locais. Ri e exibe uma arcada dentária que mais parece teclado de um Steinway.

Alguns bolinhos de bacalhau e umas sardinhas portuguesas depois achamos que é hora de passear pelo bairro. Entramos antes numa drogaria, onde a caixa está narrando ao namorado como se deu o assalto de que foi vítima ainda há pouco. "Só a carteira" diz ela, respondendo a uma pergunta do interlocutor. Que mais haveria para ser levado? Encerrado o agradável diálogo, indagamos qual o caminho para irmos visitar os famosos arcos. "Vocês estão loucos? Peguem o primeiro táxi e voltem para o hotel", aconselha a moça.

O taxista, que diz ter sessenta anos, chama-se Alvarenga, parente remoto da Marquesa de Santos, segundo nos relata. Fala de Maquiavel e Saint Exupéry, mostrando-nos a diferença entre um príncipe e outro. Fez pós-graduação no Exterior e era alto funcionário de um banco que, por medida de economia, foi enxugando a equipe. "Lucram o que lucram e despedem funcionários para fazer economia!" exclama. Enquanto aguarda o visto para ir tentar a vida na Austrália, vai circulando por essa merda de cidade, para usar o qualificativo empregado por ele. Aproveita nossa boa vontade para falar de Marcola e Fernandinho Beira-Mar, exemplos de heróis que os tempos modernos estão produzindo no Brasil. "Diga o nome de outro, diga" desafia ele. "Agora os policiais querem tomar o lugar deles, sem dar ao pessoal do morro a cesta básica e a segurança que os bandidos sem farda sempre lhes deram" conclui ele. "Desde que me conheço por gente as Escolas de Samba são lavanderias do jogo do bicho e do tráfico. Só agora descobriram isso?"

Maria Helena, que já integrou missão de paz da ONU na África, só arregala os olhos. Eu, fazendo sutil trocadilho, apenas rio.