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Comédia e Tragédia

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Atualizado em 25 de janeiro de 2007 10:16

"O cinema pode ser pensado como uma faca de dois gumes: pode trazer à luz questões relevantes e suas implicações, positivas e/ou negativas, ou reforçar e cimentar estigmas e estereótipos com o perigo de que sejam reproduzidos e perpetuados".

Ariane Lopes Messias

Havia naquele tempo o Atenas Futebol Clube, que só tinha craques. O trio Sócrates, Platão e Aristóteles era dez, como diriam os peripatéticos de hoje. Discutiam coisas aparentemente irrelevantes, como se as idéias vieram antes das coisas ou se, ao contrário, as coisas só surgiram depois das idéias. E coisas profundas, como o significado da vida.

Tempos depois apareceu um novo time, o Doutores da Igreja Futebol e Regatas. Uma dupla de área se destacou: Agostinho e Tomás de Aquino. Já naquele tempo a África produzia craques. Começaram por batizar seus colegas atenienses, sabidamente ateus. Depois, deram uma cristianizada nos dribles e nas pedaladas dos gregos. Em seguida mudaram o nome da brincadeira: sai Filosofia e entra Teologia, como anunciou o locutor.

Talvez porque eu tenha começado a debruçar-me sobre os livros muito cedo, alguns temas de que cuida a filosofia me acompanham desde que me conheço por gente. Meu pai, leitor do Juó Bananére, bem que me advertia, inutilmente, que la filosofia é uma schienza tale senza la quale il mondo vá tale e quale.

Um desses temas é precisamente o enigma da vida e da morte. Morre-se, e daí ? Eu poderia demorar-me em explicar isso, mas deixo para outra ocasião, para não me desviar daquilo que eu desejei escrever hoje.

O que quero dizer é que fui ver um filme que os jornais e revistas dizem tratar-se de uma comédia. Seu nome é "Mais estranho do que a Ficção" (Stranger than Fiction). Como todos nós que ali estávamos havíamos lido que aquilo era uma comédia, toca rir das situações insólitas que vão aparecendo na tela, não nos impressionando a cara séria do personagem principal, um excelente ator saído da televisão, que, na verdade, não achava a menor graça em nada do que estava acontecendo. À medida que o filme se vai desenrolando, eu vou ficando inquieto na cadeira, vendo nele uma profundidade que não havia lido em nenhum comentário feito pelos entendidos. Aquilo é tão comédia como a Divina Comédia do Dante Alighieri. Ou a Comédia Humana, do Honoré de Balzac. Ou as comédias que eram escritas pelos teatrólogos gregos e que não tinham o propósito de fazer rir, mas, bem ao contrário, de fazer o espectador refletir sobre a vida, o que, quase sempre, leva ao choro. Não é a toa que comédien, para os franceses, não é aquele que faz rir, mas simplesmente aquele que interpreta um papel no teatro. Traduzir comédien por comediante é cair na cilada dos falsos cognatos. Comédien é apenas e tão somente o ator. Considerando que "a luz negra de um destino cruel ilumina este teatro sem cor, onde eu vou desempenhando o papel de palhaço do amor", como cantou o Nélson Cavaquinho, comediante somos todos nós, que vamos desempenhando nosso papel nesse palco mal iluminado. Palhaços ou coisa pior.

Pois o filme cuida exatamente disso: a discussão filosófica entre livre arbítrio e predestinação ou fatalismo, o que, de início, me fez lembrar de um romance do Eça, qual deles ?, no qual, a folhas tantas, dois personagens, tarde da noite, ficam a discutir exatamente sobre isso. "O que tem de acontecer tem força", diz um deles, "não adiante lutar contra. É resignar-se". Nisso eles percebem que o último ônibus vai encostando no ponto de parada, onde ficará por alguns meros segundos. Talvez nem pare, se não houver passageiro para ser recolhido. E lá vão os dois aprendizes de filósofos a correr para pegar o ônibus, porque, se deixarem por conta do destino, talvez tenham de ir a pé para casa. Primo panis, deinde philosophari. Primeiro matemos a fome, depois vamos falar de filosofia, como se dizia quando se amarrava cachorro com lingüiça, um pouco antes dos tempos do Onça, apelido de um prefeito do Rio de Janeiro, fique sabendo a senhora, cujo nome era Luiz Vahia, brabo como ele só, como me ensinou o mesmo pai.

Quando o protagonista do filme, comendo biscoitos feitos pela moça, começa a retornar à vida, eu não poderia deixar de lembrar das madeleines, graças às quais o Marcel Proust avançava em sua busca do tempo perdido. Quantas daquelas pessoas que assistiam ao filme teriam percebido isso ? Levantem o braço os que sim.

E lá está Franz Kafka, pois o filme é eminentemente kafkiano, com o personagem sendo envolvido por uma história sem pé nem cabeça, uma história que está além de seu entendimento; e também Samuel Beckett, pois todos nós, tal como o personagem do filme, sempre estamos esperando Godot, o autor do roteiro de nossas vidas, que gostaríamos de encontrar em algum endereço; e, igualmente, as Parcas, não três mas duas, que, lá do alto, manipulam os cordéis que movimentam o personagem à revelia dele.

Diante daquelas pessoas sentadas naquele escuro a ver meras imagens projetadas em um lençol branco, não pude deixar de lembrar-me do Platão. Repare que os expectadores de um filme não olham para trás, tal como os que o filósofo grego havia postado acorrentados a olhar apenas para a parede do fundo da caverna e as sombras que lá apareciam. Se os espectadores de cinema olhassem o que se passa lá atrás, veriam que tudo aquilo ali na sua frente é pura ilusão. A começar pelo fato de se cuidar de uma série de fotografias que, exibidas em alta velocidade, isto é, 24 delas por segundo, dão a ilusão do movimento. Isso pouco nos importa. A verdade não nos interessa. Se fôssemos à cabina de projeção, veríamos que o operador atira um facho de luz sobre uma fotografia impressa em celulóide e a sombra colorida disso é que aparece lá na tela. Não era exatamente isso que dizia o Platão no Livro VII do seu República ? Você prefere ver cada animal passando entre a fogueira e a parede da caverna ou prefere ficar apenas com as sombras inexpressivas deles ?

A platéia é composta de pessoas que, em sua maioria, são incapazes de ver naquela narrativa aparentemente divertida a profundidade enorme que ali se contém, até porque ali se fala da morte. Seria coincidência que o crítico literário fosse, ao mesmo tempo, treinador de natação ? E que, a certa altura, resolve mergulhar na água ? Que sentido teria a escolha dessa impensável profissão alternativa para aquele personagem ? Cartas à redação.

A sutileza do roteirista e do diretor pode ser medida por uma cena emblemática: o personagem masculino entrega à moça por quem está interessado alguns saquinhos de farinha, que em inglês se denomina flour. É essa uma palavra homófona de outra palavra inglesa, flower. Isto é, ambas têm a mesma pronúncia. E a sutileza vai mais longe: a flor é o órgão sexual da planta. Há naquele gesto todo um discurso, que a quase totalidade dos espectadores não tem condição de perceber: o som da palavra farinha é, na verdade, uma referência à flor, que, na verdade, é a expressão de um desejo sexual. Se essa flor se chamasse orquídea, a insinuação não poderia ser mais clara: orquídea quer dizer pequeno testículo. Sutil, não ?

A história contada no filme apresenta dois finais distintos. Qual deles você prefere ? Conforme a escolha, você se identificará como fatalista ou como adepto do livre arbítrio.

Aliás, o segundo final pode ter uma leitura religiosa, se me permite a lembrança: se você implorar a Deus e praticar atos de caridade, talvez o Criador da tua história resolva alterar o seu final. Alguns chamam isso de esperança.

Così è, se vi pare, diria mestre Luigi Pirandello.