"A verdade é que apenas Deus pode conhecer Deus."
(Joseph Campbell)
Os hinduístas não se atrevem a definir Deus, ao contrário do que ocorre com os cristãos, menos cerimoniosos, menos humildes, mais atrevidos e mais racionais. Falar d'Ele diretamente nem pensar, tudo são imagens, parábolas e coisas assim, como o caso de alguém que perguntasse ao sábio que é a Lua? e tudo o que o sábio fizesse fosse estender seu dedo indicador dele sábio ali diante dos nossos olhos curiosos, que lhes vêem os pêlos do sobredito dedo, seu tarso mais o metatarso, a unha e sua eventual sujidade, coberta ou não por providencial esmalte sangüíneo ou de cor outra mais atrevida, mas a Lua mesmo, nada! Que é da Lua, mestre? E o dedo continua a apontar e o sábio diz: vai e vê. E quando nós olhamos adiante do dedo que nos indica o caminho, lá está uma foice sem cabo que se vai esvaindo até ficar o nada lunar no céu de nossa indagação ignorante. Que é da Lua, mestre? Vai e vê. Mas se não vejo nada? Aguarde pacientemente, que ela lhe ressuscitará.
Primeira idéia: crer é ver a Lua que não está lá.
E olha eu agora mirando o rio ali defronte, riacho heraclitano que se atravessa a vau e onde o sol despeja aqueles ouros lá dele e nós sem saber qual a cor do rio nem o sabor do rio a não ser atravessando, com as águas batendo-nos nas magras canelas, meio e modo de conhecer Deus. Quer conhecer Deus? diz-nos o sábio, banhe-se nele. E agora que vadeaste de cá para lá, certamente pensas que conheces o rio. Conheces nada!, que as águas então vadeadas não mais estão ali, senão lá mais embaixo, cem ou duzentos metros, talvez quilômetro, sendo atravessada agora por outras pernas, talvez de nossos netos, que também pensarão que já experimentaram suficientemente Deus, tanto quanto nossos tios e avós que cruzaram o sempre rio lá perto do seu nascedouro tempo faz.
E se vadeares de lá para cá descobrirás que tuas canelas, já enriquecidas e satisfeitas da experiência anterior do rio, talvez não se abram à nova experiência que é experimentar esse novo rio, pois as águas agora são outras, não vê que aquelas antigas já lá estão longe? Sem falar que o rio não são só águas, senão que peixes muitos, dúzias e dúzias, e mais aquelas pedrinhas, mais de centena, talvez milhar, que o passar do rio, no rio e através do rio e a decorrente experiência que elas assim façam vai delas aparando as arestas do egoísmo e da irritação, da indiferença e da impaciência, e lá vão elas se casando umas com as outras, roliças de virtudes e paciência, respeitando o modo de ser uma das outras, na convivência que se supõe decorrer da harmonia grávida de virtudes.
E se pensares que a experiência humana do rio se faz apenas com as canelas, pobre de ti! Repara na apalpação das pedrinhas que teus pés fazem quando vais e quando vens. Sentes cada pedra? Sabes o tamanho de cada uma? Sua cor? Sua forma? Sabes nada! Saberás acaso quais as pedras que pisaste quando foste e quais as que estás a pisar agora que retornas na nova experiência do rio? Certamente não. E não é só com a sola dos pés e as canelas anuecidas que se experimenta o rio, senão que também com a bunda, atente para isso. Quem te garante que teus pés não escorregarão nessas idas e vindas e quando vês estás lá estatelado no meio daquele corguinho que é o rio mas não é todo o rio? E tuas nádegas lanhadas te ensinarão coisas do rio que nem o frescor da água na canela, nem o confundir-se ele com a cor da poeira dourada que o sol lhe derrama, nem o cheiro bom da água não lhe haviam ainda proporcionado a você.
E aquilo ali é rio mas não é todo o rio. É rio porque ali há água, mas não há toda a água; há peixes, mas não há todos os peixes; há pedregulhos, mas não são todos os possíveis pedregulhos que ali estão naquele trecho que tuas canelas e teu corpo todo experimentaram na vadeagem e na revadeagem, nas idas e vindas a vau que é tua pálida experiência do rio.
E como juntar todos os peixes, e toda a água, e todos os pedregulhos para que saibas como é efetivamente o rio? Como ver ao mesmo tempo o nascimento do rio, seu caminhar por leitos planos e pedregosos, ora calmos ora cascateiros, límpidas aqui sujas ali suas águas, sua espuma e sua planície, e o seu findar, quando se finda? Quanto mais subas ao espaço para buscar essa visão de pássaro, mais longe estarás do rio e tudo o que verás será sempre um pálida imagem do rio em sua inteireza. Uma fotografia, sem vida nem cheiro, quase uma caricatura. E haverá quem diga que aquilo é um rio! Que inocência!
Pensa em tuas pernas jovens e fortes a pisar firme o chão daquele solo líquido que tua experiência agora perfura, tal como já fizeste um dia outrora. Será o pisar de hoje tão forte como o foi o de ontem? Será a correnteza de hoje menos calma do que era a de ontem? E como ficarás quando o titubeio da incerteza te atrasar os passos, por não teres reparado que as pernas já não são as mesmas, e, de fato, não no são, nem as águas já não são as mesmas, como de fato também não são? És o mesmo mas não és mais o mesmo; mesmas são as águas mas as mesmas águas já não são as mesmas; repete-se a mesma experiência que já não é a mesma experiência. Tudo tão velho e conhecido, mas, também, tão novo e desconhecido ainda.
Segunda idéia: a experiência de Deus é a travessia diária, sem saber se o atrevimento do afoito ou a fragilidade das pernas não fará daquela a derradeira travessia, a travessia que não se completará. E tropeçarás, como todos um dia tropeçamos; e cairás e serás envolvido pelas águas; e talvez te levantes e retomes a caminhada, para concluir mais esta travessia.
Ou talvez não seja mais o caso de te levantares. E como os peixes e os pedregulhos, te confundirás com as águas, que te levarão e farão do destino delas o teu destino.
E o rio que agora caminha é apenas rio, embora nele estejam os peixes, os pedregulhos e estejas também ali tu, tudo indistinto. E o rio chegará ao seu fim que não será propriamente um fim, mas um despejar-se num rio muito maior, oceânico e eterno.
E agora que chegamos, onde estão os peixes? Quais as pedras que se acamaram? Que é feito do rio? Onde estás tu?
Do Livro Praça da Fé, ainda inédito.