Românticos
sexta-feira, 13 de outubro de 2006
Atualizado em 11 de outubro de 2006 16:42
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente."
(Fernando Pessoa)
O Francepiro vive a reclamar que as editoras não se interessam pela publicação de livros de novos autores, logo ele que deu a um de seus livros um nome invejável: "Do amor e outras fraudes". Um achado! Pois tenho uma notícia alvissareira para dar-lhe meu caro Francisco, para oficializar a oportuna palavra que ouvi dias destes, híbrido que me não parece de má origem. Coisa que o nosso colega Guimarães Rosa certamente avalizaria.
Conheci numa dessas feiras de livros, que eu e você costumamos freqüentar, a simpática proprietária de uma editora sediada no Rio de Janeiro. Num casamento de egípcio e latim, escolheu ela o nome da novel empresa, que você encontrará na Internet, com uma relação de livros de poesia editados por eles. Sim, meu caro Fran: poesia! O site nos informa que Íbis era a ave cuja cabeça encimava o corpo do deus Thot, criador do alfabeto e padroeiro da literatura. Nosso padroeiro, portanto.
Como o site não indica o endereço eletrônico do departamento de distribuição dos livros, sou informado pela direção que eles apenas editam o livro. Distribuição serão outros mil e quinhentos. Isso, porém, não constituirá obstáculo capaz de desanimá-lo, se eu bem o conheço.
Tive uma tia que vendia Yakult. Ela saía pelas ruas de seu bairro, com um carrinho de feira, carregando aqueles frasconetes de lactobacilos, que é como aquilo se qualificava, se não me falha a já falível memória. Tocava a campainha da casa e repetia o mesmo refrão, dias e dias. "Vende muito disso, tia?" Ela, com seu sotaque italianado, dizia alguma coisa que eu mal compreendia, talvez palavrão, e continuava a cantarolar alguma música do Carlo Gardel, como ela pronunciava, talvez fosse ele algum cantor italiano, e não o francês Charles Gardès. O produto era fabricado pelos japoneses, segundo ela me explicava, e tinha tais e quais efeitos, que eu, menino ainda, não entendia muito bem. O que sei é que os japoneses, com essa mania de imitar os norte-americanos, acabaram acabando com o ganha-pão da minha tia Nena, pois em lugar de o seu produto ser vendido um a um de casa em casa, passou a ser exposto, em pacotes de dúzia, nas geladeiras dos supermercados. ¡Siglo veinte, cambalache problemático y febril!
Sou também do tempo do "Ding, dong. Avon chama!" Lembra? Pergunte à tua mãe. Era um Yakult preocupado com a parte de fora do corpo. O rádio e a televisão incipiente nos pediam que fôssemos atenciosos para com a "moça do Avon". Se ela apertar a campainha de tua casa, mande a moça entrar, sirva um copo d'água, um cafezinho e, se possível, compre o produto que ela está vendendo. Era o reverso da história: os norte-americanos agora a adotar o sistema nipônico de vender de porta
Outra invenção dos norte-americanos era a venda de umas panelas de plástico, se posso dizer assim, também oferecidas de casa
Pois hoje não mais nos propõem vendermos lactobacilos, meu caro Francepiro, nem panelas de plástico, nem creme anti-rugas. O que a modernidade nos propõe é que saiamos por aí, a empurrar carrinho de feira pelas calçadas arrebentadas que temos em nossa infeliz cidade, desviando-nos dos cocôs de vários tamanhos e formas que os cachorrinhos de madames e cavalheiros se encarregam de espalhar por todo canto dia e noite, a oferecermos, de porta em porta, nossos livros de poesia.
Sonhador que sou, vejo meu prezado amigo a oferecer o produto falando naquele bocal que nos aguarda na parede das casas. Tenho aqui um "lânguidas lágrimas de serena face/ que jorrais suaves por meu rosto gasto..." Ou então tenho um mais alegre: "cômodos lazeres/ placidez ebúrnea/ cômodos prazeres/ sensatez ausente ..."
Aliás, ia me esquecendo, o site da mesma editora nos recorda que Íbis era um dos muitos falsos nomes de que se valia o nosso tímido colega Fernando Pessoa, este sendo o apelido quando enviava cartas de amor à sua amada Ofélia Queiroz. Lembrança mais do que oportuna, pois o nosso Fernando António Nogueira Pessoa, que se escondia sob vários disfarces, como Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, o do Livro do Desassossego, também tinham lá seus problemas para distribuir seus poéticos livros.
Consta que nossa colega Cecília Meireles, tendo ido a Portugal, para proferir conferências na Universidade de Coimbra, desejou conhecer o poeta de quem tinha se tornado admiradora e que talvez precisasse de uma mãozinha brasileira. Marcou um encontro com os heterônomos todos, que se daria ao meio-dia na praça onde hoje lá está ele sentado, mesmos óculos, mesmo chapéu, mesma gravata e mesmo terno, agora tudo isso brônzeo. Ela esperou até as duas da tarde, tempo mais do que suficiente para que o Fernando reunisse todos eles e lá fossem todos. Cansada de esperar, Cecília voltou ao hotel e ali encontrou um exemplar do livro Mensagem e um recado do poeta: não havia comparecido porque, consultando os astros, soubera que os signos dela não combinavam com o de nenhum dos seus heterônomos. E os astros tinham toda razão: não houve mais encontro algum, mesmo porque no ano seguinte o Fernando Pessoa faleceu.
E, se isso te consola, meu caro Francisco César, só em 1982 foi publicada a edição definitiva do Livro do Desassossego, que o nosso colega lusitano havia escrito durante a vida, é claro, que se findou, como sabeis, em 1935, quando nascias.