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Bárbaros

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Atualizado em 5 de outubro de 2006 15:04

"Enquanto a religião prescreve o amor fraterno nas relações entre os indivíduos e os grupos, o espetáculo atual mais se assemelha a um campo de batalha do que a uma orquestra."

(Albert Einstein, 1951)

Na minha distante juventude, a palavra bárbaro era elogio. Alguns até esmerilhavam, usando um pretenso superlativo: "tua irmã é tártara!" Não sei se hoje ainda se usa a palavra esmerilhar, mas tártaro está mais para problema dentário do que para elogio à beleza da irmã de alguém, vaga lembrança de Gengis Khan e suas conquistas. Lembra? Até foi feito um filme sobre ele, que tinha como intérprete ninguém menos do que o John Wayne, aquele que nasceu sobre um cavalo e sempre andava com as pernas abertas. Era comum também naqueles tempos ouvirmos a mãe, referindo-se ao filho, dizer toda orgulhosa à vizinha: "esse menino é o terror das meninas!" Terror! Ela queria dizer que o rapaz gozava de muito prestígio entre as garotas. Meus netos talvez falem em azarar, verbo que eu não sei bem o que significa. Azarados, para mim, foram aqueles japoneses que resolveram estar em Hiroshima e Nagasaki quando os civilizados norte-americanos resolveram treinar tiro-ao-alvo usando seus Littles Boys, com suas 12.500 toneladas de TNT.

No livro em que agradecemos ao Alberto Silva Franco tudo o que ele tem feito pela cultura jurídica brasileira, editado pela RT, há um capítulo em que o autor apresenta alguns lances da emocionante biografia do George W. Bush, coisa para ser interpretada pelo mesmo John Wayne, que, aliás, se orgulhava de suas convicções políticas, talvez daí o seu interesse na interpretação tanto do Gengis Khan, que, segundo diziam, por onde passava nem mato crescia, quanto dos boinas verdes, aqueles simpáticos rapazes que, em nome da civilização ocidental, despejaram napalm no Vietnã e que deixaram minas enterradas quando de lá saíram, matando civis anos e anos depois de oficialmente terminada a guerra, como se diz no tal capítulo do tal livro. Pois ali se fala em "Barbárie e Civilização", incluindo-se a opinião do pensador esquerdista de origem judaica Noam Chomsky: "Os EUA estão oficialmente comprometidos com o que é chamado de ações de guerra de baixa intensidade. Essa é a doutrina oficial. Se alguém lesse as definições padrão de conflito de baixa intensidade e as comparasse com as de terrorismo, em qualquer manual do exército ou no U.S. Code, repararia que são praticamente iguais."

Quando estiver numa roda de amigos, pergunte ali quem sabe quem foram os vikings. Dez entre dez dos que levantarem a mão dirão que eram uns bárbaros escandinavos, que, hábeis navegadores, chegavam com seus barcos silenciosos e saqueavam as cidades abordadas por eles, retirando-se antes que as beatas locais dissessem "ai, Jesus!". Será que eles saberão que os vikings criaram a primeira república em toda a Europa, quando conquistaram a Islândia? Será que eles sabem que os bárbaros vikings chegaram à América mais de 500 anos antes dos civilizados espanhóis? Os mesmos espanhóis que dizimaram as civilizações maia, asteca e inca, mais avançadas, em certos temas, do que os europeus? Os vikings se impressionaram tanto pela civilização existente do lado de cá do mundo que certo chefão deles enviou o filho para fazer uma espécie de MBA na Inglaterra. O tal filho de lá voltou tão impressionado com o que viu que modificou a história da Escandinávia. "Isso de Tor com um martelo que vai até a cabeça do inimigo e depois volta à mão dele como se fosse bumerangue não está com nada, velho" deve ter dito Olav a seu pai. "O deus Odin com um cavalo de oito patas? Onde nós estávamos com a cabeça? Jesus Cristo é dez!" teria dito ele, mostrando a camiseta por baixo da armadura, como fazem alguns jogadores de futebol hoje. O chefão Harald Grenske só ouvindo os descabidos comentários do filhote, isso por volta do ano 1.000 d.C. Pois não é que o Harald morre e o Olav assume o comando de tudo aquilo? Pois lá está ele, embora rei, de espada na mão, a perguntar a cada um que encontra na rua: "Acreditas em Jesus Cristo?" No que o entrevistado vacilava ou ganhava tempo com um "hein?", era degolado. Converteu mais gente do que esses pastores da televisão com sua falinha melosa. Pois esse civilizado degolador de incréus é o padroeiro da Noruega e santo canonizado pela Santa Sé.

Alguns anos depois, o civilizado povo alemão resolveu aprimorar a raça. Nada de negros, nem ciganos, nem aleijados. Isso depõe contra a raça ariana. "E vamos incluir na lista também os judeus", disse o líder deles. Claro que não foram os alemães que fizeram isso, mas alguns deles, uns lunáticos, que, em nome do nacionalismo, provocaram de um grande cientista judeu, Albert Einstein, não sei se o leitor conhece um notório pacifista, estas palavras de ódio: "Os alemães, como povo inteiro, são responsáveis por esses assassinatos em massa e devem ser punidos como povo, se existe Justiça na Terra." Recorde-se que ele nasceu em Ulm, uma cidadezinha situada no sul da Alemanha.

A família de Einstein era tão pouco ortodoxa que ele acabou se recusando a fazer o bar mitzvah, coisa que não tinha para ele qualquer sentido, além de ter estudado em um colégio católico, onde certo padre lhe mostrou a diferença entre os bárbaros judeus e os civilizados cristãos, ao exibir à classe um enorme prego, dizendo: "Foi com isto que os judeus pregaram Jesus numa cruz." Os olhos de toda a classe se despejaram sobre ele, que talvez tenha respondido a muda indagação: "Tudo o que posso dizer é que eu não havia ainda nascido naquele tempo."

Pois nos últimos cinqüenta anos muitos judeus tentaram convencer o mundo de que no holocausto nazista só morreram judeus. Eu, pelo menos, não me lembro de ter visto algum cigano, algum negro ou algum gay na lista do Schindler. Tudo isso está indo agora por água abaixo, em face da conduta de meia dúzia de nazistas que resolveram devolver o sofrimento que seus antepassados conheceram na Alemanha hitlerista. Se o Einstein fosse libanês, certamente diria: "os judeus merecem o inferno!" Mas o Hesbollah é um bando de terroristas!, havereis de dizer.

Passo, então, a outro assunto. Ou ao mesmo assunto, dependendo de como se queira considerar isso, pois, à maneira de Esopo e de La Fontaine, pode-se falar de lobos e cordeiros e deixar à imaginação do leitor identificar quem é um e quem é outro. Problema de quem lê não de quem escreve.

Imagine que seu vizinho tenha no quintal uns cachorros que latem dia e noite, atormentando tua vida e a de teus familiares. Um terror! Você leva o problema ao tal vizinho que, ou porque não quer, ou porque não pode, não o elimina (falo do problema, não do cão). E os cães continuam a ladrar e a latir noite e dia. Um dia você perde a paciência, compra um galão de gasolina e atira todo o líquido sobre a casa do tal vizinho. Não contente com isso, você arremessa em seguida sobre a mesma casa uma tocha, o que, previsivelmente, provoca um incêndio. Pronto, o problema está resolvido, dirá você.

Pausa. Que será que o teu psicoterapeuta diria desse teu comportamento? E tua mulher? E teus amigos? E tua consciência?

Você já leu alguma coisa sobre war casualties, que você, naturalmente, traduzirá, pro domo sua, como dizem os advogados, por "meras casualidades" provocadas pela guerra, aqueles efeitos imprevisíveis que toda guerra acaba produzindo. O sentido, porém, não é esse, meu caro. Casualty pode significar, de fato, mera casualidade, mas quando vem acompanhada da palavra war significa simplesmente, na linguagem militar, "baixa". A expressão war casualties refere-se ao número de mortos e feridos provocados por uma guerra.

Você dizer que o fato de a mulher do teu vizinho agora apresentar queimaduras de primeiro grau, provocadas pelo incêndio da casa, foi mera casualidade, coisa que você não desejava quando jogou a gasolina e nela ateou fogo, pode ser útil à tua boa consciência. Talvez até o sacerdote amigo te absolva depois de te mandar rezar meia dúzia de Ave-Marias. Mas, que dirão a isso os demais vizinhos, sabedores de que têm por ali alguém tão irresponsável como você? Tão odiento? Tão desprezível? Tão psicopata?

E as crianças que morreram esmagadas quando ruiu o teto da varanda onde elas brincavam? War casualties, dirá você, cheio de empáfia. E, em último caso, culpará os cachorros. "Se eles não tivessem começado isso tudo..."

De agora em diante, como você se sentirá quando sair à rua e notar nos olhos dos que te olham aquele misto de ódio e de desprezo, por terem ao lado deles alguém tão abominável? Você conseguirá conviver com isso? Ou acabará por levantar os muros do teu quintal, cada vez mais altos, para viver ali cercado de teu ódio, alheio à dor alheia? Talvez um dia você resolva contratar o Steven Spielberg ou o Roman Polanski para mostrar ao mundo todo como foram terríveis aqueles tempos em que você e sua família tiveram de conviver com os latidos incessantes dos malditos cachorros do vizinho. Sobre o que aconteceu com a família dos vizinhos, evidentemente, eles nada dirão no filme, pois isso não vem ao caso.

O pior é que os tais cachorros continuarão a latir, ameaçando pessoas no mundo todo. E teus filhos e teus netos pagarão por aquilo que você fez.