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Corruptelas

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Atualizado em 31 de agosto de 2006 09:50

Ela é de uma delicadeza ímpar, falando baixinho, com um leve sotaque ribeirãopretano. Quando recebo seus bilhetes eletrônicos, até sinto perfume de rosas emanar deles. E fico a imaginar a Ariane catando no dicionário palavras aveludadas, assim como quem escolhe bombons na vitrina da Cristallo ou da Kopenhagen, para enfeitar os seus bilhetes. Digo-lhe que Ariadne era filha do rei Minos, de Creta, moça prendada, que era dada ao tricotamento, produzindo belíssimas rendas com o fio de seda produzido por ela mesma, olha que economia! Fazia redes maravilhosas, que esticava entre os galhos de árvores, para que, em noite orvalhada, os raios de luar, assoprando sobre elas, as transformassem em rendados de cristal.

Embora fosse cretense, ela apaixonou-se por Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, cidade inimiga daquela governada por seu pai. Os atenienses, naquela época, estavam sujeitos ao rei Minos, que exigia que todos os anos eles enviassem sete rapazes e sete moças para serem sacrificados, em honra ao Minotauro, que os devorava um a um. O animal morava no labirinto, que era um complicado edifício do qual quem ali entrasse não conseguiria mais encontrar a saída. Fora construído por Dédalo, o Niemeyer da época, que, por sua vez, era pai do famoso Ícaro, nome que a moribunda Varig escolheu para com ele batizar a sua revista de bordo. Dédalo e o filho haviam ficado presos no interior da construção inventada pelo pai e, para dali saírem, o pai, mais inventivo que um Zé Preá, colou, com cera derretida, nele e no filho, número enorme de penas, que formaram asas. Voaram com elas dali para fora, salvando-se. Foi quando o filho, empolgado, passou a voar cada vez mais alto, até aproximar-se do Sol. Não deu outra: a cera, que havia solidificado, voltou a derreter e o rapaz só não se esborrachou lá embaixo porque caiu no mar. Veja a sorte do atrevido moço. Esse mito vai ser depois reproduzido na história de Lúcifer, um anjo que, tentando equiparar-se a Deus, voou muito alto: "Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo". Pois também ele queimou as asas, desabou lá de cima e se tornou conhecido como Satã ou Diabo, inimigo de Deus. É o que nos conta Isaías.

Voltemos, porém, à nossa heroína. Deu-se que Atenas, em certa ocasião, enviou, para satisfação do apetite brutal do Minotauro, dentre os rapazes, ninguém menos do que Teseu. Ariadne teceu um fio de seda (os cientistas dizem que o fio de seda produzido pelas aranhas, denominação que deriva do nome da nossa heroína, é proporcionalmente três vezes mais forte do que um fio de aço), cuja ponta enrolou na cintura do seu amado.

À medida que ele caminhava pelos corredores do labirinto, ela encompridava o tal fio. Quando Teseu deu de frente com o Minotauro, aquela cabeça de touro e um corpo de Schwarzenegger, passou-o pelo fio da espada, decapitando-o. Voltar foi mas fácil do que vencer o Corinthians: foi só ir recolhendo o fio de seda e acabar preso na teia da amada.

"Mas eu não sou Ariadne; sou Ariane", diz minha missivista, modesta. Ocorreu aí, minha princesa, aquilo que os gramáticos chamam de corruptela, palavra horrorosa para indicar uma doença que ataca certas palavras. Nem o nome da mãe de Nosso Senhor escapou dessa catapora gramatical: de Miriam, tornou-se Maria.

E eu mesmo me incluo no rol dos por ela atingidos, ainda que indiretamente. O Silvinho que trago no nome ("certamente o pai dele não sabia que ele iria crescer tanto" comentou o filho do Cláudio José Santoro quando o pai lhe disse meu nome completo) era Cerviño na Galícia, Espanha. Vindo para cá um deles, aqui produziu filhos e netos, um dos quais se deu conta de que o nome se referia a um animal delicado que, dentre outros atributos, possui um par de chifres em forma de galhos secos de árvore. À medida que o tempo passa, esses galhos crescem para cima e se multiplicam para os lados, como ocorre com certos maridos. Tal animal também é conhecido por veado.

Antes que em nossa família todos os homens fossem Veadinhos (houve alguns, de fato, mas poucos), surgiu a providencial corruptela, graças à qual nós, a geração futura, em lugar de sermos equiparados àquele comprometedor animal, somos confundidos com os jogadores daquela seleção de futebol que apenas fez turismo pelos campos de futebol da Alemanha: Ronaldinho I, Ronaldinho II, Robinho, Adrianinho, Parreirinha, Zagallinho...