Apresentação
sexta-feira, 28 de julho de 2006
Atualizado em 22 de agosto de 2006 13:22
Nas aulas de literatura aprende-se a diferença entre romance, novela, conto e crônica. Quando nos diplomamos, porém, descobrimos que, olha que originalidade!, na prática a teoria é um pouco outra.
Em primeiro lugar, se falarmos em novela, nosso ouvinte pensa que estamos a falar daquilo que os norte-americanos apelidaram Soap Opera, a significar que aquelas histórias que se arrastam por capítulos e mais capítulos na televisão só são vistas por donas de casa desocupadas, se é que lavar e passar roupa, tirar pó dos móveis e dos tapetes, estender lençóis, fazer o almoço e depois lavar os trens de cozinha, e tudo o mais que uma dona de casa conhece (ou conhecia, antes da chamada emancipação feminina, que as tirou do sacrossanto recesso do lar para trazê-las para esse mundo pecaminoso outrora só trafegado por homens trabalhadores e vadios e mulheres de má fama, como se dizia no tempo do Onça) muito bem possa chamar-se não-ocupação.
Veja aí o tamanho do preconceito. O Ranulfo e o Geraldo Roberto, por exemplo, dentre muitos outros, muitos dos quais dizem que não, e que estão longe de ser donos de casa, no mau sentido, não perdem a novela das 8 horas. Estão, merecidamente, desocupados, o que, em nosso jargão profissional, se contorna com um eufemismo: in otio cum dignitate.
Como o Canuto ensinava que a diferença entre um processo criminal e o inquérito policial é a mesma que há entre um jacaré e uma lagartixa, não cairia mal eu empregar a mesma comparação para distinguir novela de romance, quando me refiro a trabalhos como Sargento Getúlio, do João Ubaldo, ou Manuelzão e Miguilim, do Guimarães Rosa. Como se pode ver desses livros, a novela é uma narrativa mais curta e menos complexa do que um romance, o que não nos diz muito, mesmo porque o romance é aquela narrativa que envolve inúmeras histórias que se cruzam, personagens e mais personagens que se relacionam, decurso de tempo, locais diversos onde se passa a ação e tudo o mais que um cartapácio pode conter. E tome tijolões como o Guerra e Paz ou a Comédia Humana, que o leitor ainda aproveita para calçar a cama ou fazer exercício de levantamento de peso. E que, não poucas vezes, consumiu a vida toda de seu autor, como o colega Gustave Flaubert, que teria lido mais de 1500 livros antes de iniciar a escrita do romance Bouvard et Pécuchet, que certamente nenhum de nós leu, mesmo porque ele não teve tempo para concluí-lo.
Algo como Crônica de Uma Morte Anunciada não se prestaria nem a uma coisa nem a outra. Só mesmo ao prazer da leitura.
Em seguida, a julgar pelo tamanho, temos o conto, uma narrativa menos extensa, cujo tamanho exato nenhum professor sério tentou fixar, havendo até mesmo contos curtíssimos. O Modesto Carone, também da gloriosa turma de 60 do Largo de S. Francisco e que, tanto quanto o Zé Celso Martinez Correa e o Renato Borghi teve o bom senso de jamais ter advogado, brindou-nos com soberbas traduções do Kafka, algumas das quais são mini-contos. Sobre o conto, nada como a praticidade do nosso Mário de Andrade, ele mesmo um excelente contista: "conto é tudo aquilo que o autor chama de conto". E mais não disse, nem precisava.
E sobra-nos a crônica, que é o que se pretende trazer neste nosso picadeiro. Falar em crônica é falar
Para alguns desavisados, Machado de Assis escreveu apenas romances e contos. Falar nele é falar
Pois em uma crônica datada de 1877 ele nos ensina aquilo que qualquer pessoa razoavelmente alfabetizada pode fazer: escrever uma crônica. "É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos; fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la grace est rompue: está começada a crônica."
Se o Machado, que era o Machado, cronicava, por que não eu?