"Amo as pedras, os astros e o luar
que beija as ervas do atalho escuro.
Amo as águas de anil e o doce olhar
dos animais, divinamente puro.Amo a hera, que entende a voz do muro
e dos sapos, o brando tilintar
de cristais que se afagam devagar,
e da minha charneca o rosto duro.Amo todos os sonhos que se calam
de corações que sentem e não falam,
tudo o que é infinito e pequenino!Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
do nosso grande e mísero Destino."
Florbela Espanca
A escolinha ficava ali no final da Karljohansgate, atrás da Zentralstation, no "bairro dos turcos", o Grønland, onde, aliás, hoje vivem africanos, paquistaneses e vietnamitas. Algumas das crianças passavam todos os dias junto ao muro da casa grande, onde tremulava a bandeira colorida, stars and stripes forever, que despertava a atenção daquele bando de pássaros, a pipilar o tempo todo, crocitando todas ao mesmo tempo, como se fossem o prenúncio da primavera, admirando o belo pavilhão colorido do país estrangeiro, acostumadas que eram à fria cruz central em todos os pavilhões escandinavos, mude só a moldura.
Na escola, a Grunnskole, de onde vinham àquela hora, ainda não haviam aprendido que o espaço além daquele muro era território estrangeiro, pois não lhes ensinavam essas coisas de direito internacional e outras bobagens que os adultos inventam para criar barreiras entre si e se tornarem de irmãos em inimigos. Sabiam apenas que as árvores em seu país não tinham dono, pois o allemannsretter1 assegurava a todos poder entrar no terreno alheio e colher o que a natureza ali plantasse. Res nullius, res omnium, diriam elas, se soubessem aquela língua estranha que jamais haviam ouvido alguém falar por ali. E da qual ninguém necessitava para ser feliz.
Naquele dia, na classe, a colega morena exibira ao menino loiro um sorriso diferente daquele que costumava entregar aos outros colegas, sempre gentil e tímida, aquele sensual botão vermelho no centro da testa. Era preciso retribuir-lhe a especial atenção. Mas como?
Ali estava agora a oportunidade de mostrar sua valentia, andando sobre o muro alto da casa grande, à maneira de um nefelibata, palavra que ele jamais ouvira na vida para indicar-lhe aquele estado de enlevo que aquele par de olhos lhe produzia. E que, aliás, jamais nunca ouviria.
Sob os olhos espantados das demais gralhas, o menino atravessou a rua, veio correndo, e conseguiu, com salto felino, alcançar o cimo do muro pretendido. Com algum esforço pôs-se de pé lá em cima, abriu os braços em cruz e digeriu gostosamente o aplauso dos colegas. E, mais do que aplauso, o sorriso especial da menina morena e de longos cabelos negros.
E o sorriso foi o estimulante que o fez caminhar, lentamente, o estreito caminho que escolhera para mostrar à menina que era, de todos aqueles machos, a gralha que a natureza havia reservado para ela. Que, por sinal, ainda não tinha visto toda sua valentia, pois havia ainda que alcançar o cetro comprobatório de seu triunfo. Descer do muro, colher frutas silvestres e, supino esforço!, com o troféu na mão, galgar de novo o muro, trazendo à rainha o butim de sua pilhagem, viking romântico do século XXI.
A vida, porém, é feita de surpresas, aprendeu ele, ao perder o equilíbrio e cair do lado de lá do muro, despertando um oh! dos colegas e um ar de preocupação no rosto da menina morena.
Do outro lado do muro, o receio dos adultos diante de questiúnculas que vinham ocorrendo além, muito além daquelas terras geladas e que poderiam vir a molestá-los algum próximo dia, fê-los cercarem-se de cuidados desdobrados. E aquilo que se mostrava bosque era, na verdade, um campo minado, preparado para o pior.
O fato é que as avezinhas não souberam explicar ao policial chamado, falando todas ao mesmo tempo, se o grito veio antes ou depois da explosão. O menino loiro, única pessoa autorizada pelas circunstâncias a esclarecê-lo, jamais poderá fazê-lo. E isso era o que importava.
E a menina morena ficou sem as frutas silvestres, substituídas por uma dor profunda que lhe agulha o peito sempre que vê, na classe, aquela cadeira vazia.
Do livro Contos da Noruega, ainda inédito
1O poder do proprietário sobre as frutas silvestres vai somente até onde a vista alcança. O que ultrapassa isso é coisa de todos, "direito de todos os homens