Força do mal (A)
sexta-feira, 6 de maio de 2011
Atualizado em 5 de maio de 2011 14:57
"Exército dos EUA se desculpa por fotos horríveis do Afeganistão."
Revista Der Spiegel
edição de 13/4/2011 - clique aqui
"Morte foi vingança; Al Zawari já era o líder da Al-Qaeda."
Jânio de Freitas
Folha de S. Paulo, 3/5/2011
"A necessidade de uma mudança humana profunda surge não apenas como imperativo ético ou religioso; não apenas como uma exigência psicológica decorrente da natureza patogênica de nosso caráter social de hoje, mas também como uma condição para a simples sobrevivência da espécie humana."
Erich Fromm
Ter ou ser?
"Será que não quisemos até agora fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens? O resultado não é dos mais brilhantes, pois não temos homens nem cristãos."
Paul-Eugène Charbonneau
Amor e liberdade
Que é o bem? Por que existe o mal? Com a palavra o leitor.
Confesso que desde que me conheço por gente esse tema me cativa. Os trechos dos livros de Erich Fromm e do padre Charbonneau acima transcritos foram por mim citados no discurso de posse como juiz no Tribunal de Alçada Criminal, lá se vão mais de 25 anos, que assim terminava: "Nossos filhos e netos certamente nos cobrarão, no futuro, por aquilo que, podendo mudar, permitimos que permanecesse". Que mudou, para melhor, de lá para cá?
No livro "Doc Vic", ainda não editado, atribuo a meu personagem a seguinte conduta: "Certa ocasião, quando passava férias na fazenda de um tio, aconteceu com o Vic algo que mudou, definitivamente, seus planos de vida. Ele viu dois frangotes que brincavam no terreiro do sítio. Os dois galinhos davam saltos e tentavam esporear-se, treinando para quando fossem adultos, como fazem todos os animais. Aí deu-se o inesperado. Um desses acontecimentos decisivos na vida de uma pessoa. Algo que, por mais que queiramos, não conseguimos explicar. Como bom soldado, responsável pela lei e pela ordem, o garoto achou que deveria intervir para separar os contendores e restituir a paz ao terreiro, tal como fazem os militares. Colocou uma pedra no estilingue e atirou com a intenção de assustar os briguentos. Ocorreu, então, que a pedra atingiu o frágil pescoço de um dos frangos, que se pôs a pular e pular, depois a rodar e rodar, até que caiu no chão, onde permaneceu imóvel. O Vic se aproximou, tentou reanimar a ave, mas nada conseguiu. Naquele preciso momento, o nosso personagem tomava conhecimento da fragilidade da vida e da realidade da morte."
Acontece que o causador involuntário (os juristas diriam, fosse humana a vítima, que houve dolo indireto ou eventual) dessa morte foi o autor do livro, que atribui ao seu personagem o sofrimento que ele mesmo experimentou ao produzir aquela morte indesejada.
Quantas pessoas têm pela vida alheia (animal ou vegetal) esse mesmo respeito? Meu neto Felipe, ainda com menos de 4 anos de idade, foi o único aluno que não levou à aula um "inseto de jardim", como lhes havia determinado a professora. E ficou revoltado porque alguns colegas levaram o inseto morto. Para ele, que se recusa a arrancar uma flor do jardim, "vida" e "morte" não se referem apenas ao ser humano, mas a todos os seres vivos. Isso é regra entre os seres humanos ou é uma exceção absoluta? Por que? Com a palavra o leitor.
Enquanto nos crimes culposos está presente a falta de cuidado, chame-se isso imperícia, imprudência ou que outro nome se lhe dê, nos crimes dolosos está presente o desapreço à pessoa do outro. Sua honra, seu patrimônio, sua integridade física, sua vida são realidades que absolutamente não sensibilizam o criminoso. O que traz um problema de não fácil solução: é possível fazer de um adulto insensível uma pessoa sensível? É fato inquestionável que a maioria das pessoas respeita os valores alheios mais por temor da punição ameaçada pela lei penal do que por apreço à pessoa do outro. Basta ver o que ocorre em nosso país, onde, sendo a impunidade a regra, temos o que temos. Alguém conhece algum homem público que tenha cumprido pena pelos crimes que praticou no exercício do cargo? Se essa avis rara existir, foi ele "ressocializado"?
Desde que o mundo é mundo os cientistas da alma tentam explicar as razões do comportamento humano. Mata-se desde sempre, como se mostra já no pórtico da Bíblia, nada obstante (ou precisamente por isso) os laços fraternos que uniam Caim e Abel. Moisés, preocupado com a ordem social, mais do que com a salvação das almas de sua gente, pôs na boca de Deus uma ordem: "Não matarás!", a mostrar qual era a regra vigente até então. Será que se passou a matar menos a partir daí?
Um ser humano que, numa crise paranóica, aqui ou alhures, passa a matar indiscriminadamente pessoas, adultas ou não, não me impressiona como fato social. Esse acontecimento é para mim um "fato natural", no sentido de ser fruto de uma explosão da natureza, tal como as manchas solares, os vulcões ou um tsunami. Há como impedir? Talvez colocando um policial militar ao lado de cada civil, para protegê-lo. Ou para levá-lo a um cemitério e executá-lo? (clique aqui)
Ao reverso, impressionam-me, e muito, fatos como o de homens e mulheres públicos (a equiparação de gêneros tem dessas inconveniências, cara leitora) apropriarem-se de valores destinados ao pagamento de merenda escolar, que se destina precipuamente a membros de estamentos sociais sem condições econômicas de dar a seus filhos o volume de calorias de que necessitam para serem adultos aptos a enfrentar as dificuldades naturais da vida. Quem são as vítimas desses canalhas? Número inimaginável de pessoas, que certamente permanecerão anônimas, sofrendo as consequências de sua subnutrição. Como "ressocializar" tais criminosos? Vivêssemos em um país civilizado e tais pessoas seriam mandadas para a transamazônica, com uma enxada na mão, em regime de galés perpétuas, como aqui já se fez no passado (clique aqui). Ironia das ironias: isso ocorreu no Maranhão! Hoje, graças à nossa "evolução social", a um humanismo mal assimilado e a uma visão caolha da dignidade da pessoa humana, até mesmo tornozeleiras antievasivas são alvo de críticas dos que não têm nada mais eficiente para sugerir. (clique aqui)
Não foi o senador Marco Túlio Cícero quem indagou "quis ignorat maximam illecebram esse peccandi spem impunitatis?" Perguntem ao prof. Príncipe Credídio. E olhe que naquele tempo o chefe do "baixo clero" era ninguém menos do que o Lúcio Catilina. Aliás, muito embora tenha Catilina sido condenado à morte, graças aos discursos inflamados de seu colega de Senado, aí incluído o celebérrimo exórdio ex-abrupto "quousque tandem", como lhe chamam os latinistas, quem acabou sendo executado foi Cícero, cujas mãos e cabeça foram expostas na tribuna do Senado, como uma espécie de advertência aos pretensos moralizadores.
Em 1991, o prof. Eugene W. Hickok Jr. reuniu estudos de constitucionalistas estadunidenses sobre o alcance atual (Original Meaning and Current Understanding) da Declaração de Direitos Humanos norte-americana (The Bill of Rights), publicando-os pela University Press of Virginia. Sobre a pena de morte, o ex-procurador geral de Justiça William Bradford Reynolds sustenta sua conveniência e constitucionalidade (The Death Penalty is not Cruel and Unusual Punishment), ao passo que Jack Greenberg, professor de Direito na Universidade de Columbia, demonstra estatisticamente (Against the American System of Capital Punishment) que é decrescente o número de execuções consumadas, até porque, de 1982 a 1985, a Suprema Corte daquele país invalidou cerca de 35% das condenações, por deficiências formais dos respectivos processos.
Com quais argumentos você mais se identifica? Temos por aqui estudos sérios como esse?
Quanto a mim, prefiro recitar os versos do lusitano José Régio:
"Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
ninguém me peça definições.
Ninguém me diga: 'vem por aqui!'
A minha vida é um vendaval que se soltou,
é uma onda que se alevantou,
é um átomo a mais que se animou.
Não sei por onde vou,
nem sei para onde vou.
Só sei que não vou por aí!"