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Ídolos

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Atualizado em 7 de abril de 2011 12:09

Todos nós guardamos em algum panteão interior os nossos ídolos, qualquer que seja a conotação que ele tenha. Para minha mãe, italiana cuja mocidade foi dar duro numa tecelagem da Mooca, a figura de Getúlio Vargas merecia retrato na parede. Da cozinha, é claro, pois meu pai não via com bons olhos aquele ditador, que, para ela, significava jornada diária limitada de trabalho, descanso semanal, férias remuneradas, carteira assinada, salário mínimo, bolsa família, cesta básica e tantos outros benefícios que, demagogo ou não, o homem, ao ver dela, havia imposto aos exploradores do trabalho alheio. Ou ele ou outro demagogo de igual calibre. Censurar como?

Para mim o heroi era outro. Aliás, quem naquela época não desejou ter os poderes do Mandrake, aquele que, cartola na cabeça, bengala na mão e bigodinho ridículo entre o nariz e a boca, estava sempre acompanhado de um negrão de ridículo chapéu na cabeça, um fez, veja só o nome do chapéu!, que servia, falo do Lothar, apenas para nos mostrar a superioridade da raça branca, coisa que nós, ainda crianças, éramos incapazes de perceber. E ainda tinha uma ligação um tanto platônica com a princesa Narda, que nos sugeria um trocadilho inevitável: ele não queria narda com ela. Fazer um gesto mágico durante uma partida de futebol e o goleiro adversário ficar imóvel, enquanto a bola seguisse lentamente a caminho do fundo das redes, quem me dera. Quem, falo agora dos que vivemos os tempos do gibi mensal, não teria algum dia tido um desses devaneios?

Para outros, o ídolo talvez seja o Pelé, digno de estátua em praça pública, maior futebolista do século, mil gols, salvem as criancinhas. Não confundir com o Edson Arantes, coisa que nem o negão, como ele mesmo a si se refere, confundiria. Ao contrário do que disseram os jornais, quem não foi ao enterro da filha, que tinha a cara dele por mera coincidência, por não se sentir bem em velórios, não foi o divino Pelé, mas o humaníssimo Edson. Que, aliás, sugeriu, com a tal frase, que todos nós outros vamos a velório para nos divertirmos.

Claro que há aqueles velórios que, de fato, nós lá vamos apenas para nos certificarmos de que quem morreu foi mesmo aquele grandessíssimo filho da. Mas, vamos e venhamos, na maioria das vezes o que nos leva ao necrotério não é o razoável desejo de confirmar que nunca mais o mundo contará com aquela presença nefasta que agora ali dorme, com os merecidos tufos de algodão nas narinas, nós de óculos escuros, para que não percebam nossa satisfação ao depois de confirmarmos o que nos haviam dito a respeito do passamento daquela lamentável figura. Penso, porém, que a regra não costuma ser essa, caríssimo Edson Arantes. Entende?

Eu, hoje, tenho atração por certos ídolos bíblicos. Falo do Velho Testamento, aquele conjunto de livros, que, não por acaso, se chama Bíblia, plural, salvo engano, da palavra biblium, que significa, veja aí no dicionário, livro. E quando esses livros formam um conjunto de cinco, néctar dos néctares, lá está o grego a nos dizer isso, com o nome de Pentateuco, coisa que muitos confundem com alguma ave pré-histórica de bico com dentes.

Confesso-lhes que faço essas visitas ao Velho Testamento não tanto para seguir o exemplo dos herois que ali aparecem, mas, pelo contrário, para consolar-me diante de minhas inúmeras fraturas de caráter, para dizer o mínimo. Ler a vida dos santos tem isso de enfadonho: eles eram, segundo seus biógrafos, só virtudes, de manhã à noite, doze meses por ano, anos e anos de suas vidas. Quando um Francisco de Assis se atira na neve para não dizer àquela donzela que por ali passa aquilo que ele teve vontade de dizer e não fazer a ela o convite que ele teve vontade de fazer, que alívio! Alívio dele e nosso, é claro. Já o Agostinho pede perdão a Deus pelos pecados que cometeu quando criancinha, especialmente cometidos contra a mãe. Como se as mães não fossem todas odiáveis, pelas restrições educacionais que nos fazem, enquanto os pais se omitem.

Mas voltemos ao Velho Testamento e vejamos o jovem Davi, que, por sinal, o meu querido Gregory Peck interpretou nos idos de 1950, direção do Henry King, que mandou escanhoar o astro, onde já se viu galã de filme norte-americano com barba e cabelo cacheado pendendo ao lado das orelhas, chapéu negro na cabeça? Os ortodoxos que me desculpem, mas cinema é cinema, deve ter dito o velho King.

Pois lá está o Gregory Peck aceitando o desafio de enfrentar o gigante Golias, na rua Samuel, número 17, o que, ao que nos dizem as regras, era coisa de espada contra espada. E não é que o mocinho ruivo, malandrote que ele só, saca do alforje uma arma nova e, qual um Indiana Jones, em lugar de lutar de igual para igual, com as armas do avençado, dá um tiro na testa do infiel e encerra a luta? A mostrar a razão do Konrad Lorenz: na natureza não vence o mais forte, mas o mais malandro. Quando alguém o chama de lado e sussurra que aquela arma é proibida pela Convenção de Genebra, o Davi não deixa por menos: "guerra é guerra!"

Avancemos umas páginas. Agora o mesmo e exemplar líder está às voltas com Betsabá, papel de Susan Hayward, no motel da rua Samuel 2, número 11. O fato de ela ser casada com Urias pouco lhe importa ao impetuoso Davi. Além de engravidar a submissa esposa do general heteu, ainda trama a eliminação do pobre corno. Promove o tonto a general e o encarrega de comandar uma tropa de kamikazes. "Mas nada de ficar lá na trincheira, só a dar ordens. Nada disso. Quero-o lá na frente de combate, a servir de exemplo a nós todos por tua coragem", diz o cínico Gregory Peck, dando um tapinha nas costas do novel comandante, que, último a saber das intenções alheias e da conduta da esposa, como é de lei, vai para a guerra e não dá outra: toma um balaço nos heroicos peitos, o que muito entristece o cínico Davi, que agora tem o caminho livre para exibir a amante e o filho por eles gerado.

Algo realmente digno de um ídolo, um exemplo a ser seguido por nós todos, até porque ele falava em Deus a torto e a direito. E se ele o fazia e se a narrativa é do confiável Moisés, quem sou eu para pôr em dúvida os princípios éticos que aquele modelo de virtude nos transmite?

O que sempre sugere uma pequena revisão do decálogo baixado pelo mesmíssimo autor de tal narrativa, nos pés do monte Sinai: "não cobiçar a mulher do próximo, a menos que o próximo não esteja muito próximo".