Quem é ou foi juiz já ouviu coisas que o comum dos mortais não imagina, quando se trata de explicar o inexplicável. Os acusados, por exemplo. Fiquei pasmo certa vez quando um rapaz, acusado de estar portando aquilo que a antipatia dos promotores chama de Cannabis Sativa de Linneus, admitiu expressamente o fato. Sim, ele era usuário de maconha, de diamba, de erva do diabo e de tantos outros nomes que o vulgo dedica a essa misteriosa planta, elevada aos céus, naqueles tempos, por um cantor jamaicano que se orgulhava de ter um pelotão de filhos, cada um de uma fã diversa. O tal réu não só admitia como me desafiava: "o senhor sabe, por acaso, o que é ouvir a Tocata e Fuga em ré menor, do Johann Sebastian Bach, embalado numa boa tragada disso que os burgueses não admitem que se fume?" indagou-me o rapaz, por sinal, estudante de Engenharia na Politécnica. Eu não acreditava naquilo. Até porque a Tocata e Fuga não é a peça de Bach que mais me agrada. Ainda se fosse a Lacrimosa, do Réquiem em ré menor, de Mozart, ou o Canon, do Pachelbel, eu até que arriscaria. Como seria aquele dueto de violinos, que conversam, um seguindo a trilha aberta pelo outro, embalado pelo estimulante a que meu jovem estudante de Engenharia dava tanta relevância? Quem sabe não seria isso má ideia.
Outra vez foi uma senhora acusada de curandeirismo. Isso há mais de 40 anos, início de carreira, aquela cara de moleque deslumbrado, talvez ela nem soubesse que eu fosse juiz, até porque em Araraquara, quando se falava nessa atividade, vinha à mente as brincadeiras do Loffredo ou a enganadora carranca do Geraldo. "Quer dizer então que a senhora diz que tem o poder de cura?" indaga o juiz novato, todo cheio de si. Ela encarou-me, olho no olho, pois eu também, naquela época, mandava os réus ficarem de pé para serem interrogados, mania de imitar as bobagens dos mais velhos! "Em primeiro lugar, eu jamais disse que tenho o poder de curar. Quem cura é ele." Ele quem, minha senhora? "O doutor fulano, de quem eu sou apenas o instrumento". Devo ter feito uma cara de quem pouco acreditava naquilo, impressão errônea a dela, mesmo porque meu pai, ainda vivo, não só era amigo do Chico Xavier como era leitor do Pietro Ubaldi, cuja doutrina seguia piamente. Ele era até crítico de falsos médiuns que se valiam de pretensos fenômenos espíritas para enganar os incautos. Acho que até desmascarou alguns deles. O fato é que a senhora, diante de minha expressão, desafiou-me: "Quer que eu incorpore o doutor na sua frente? Quer?" Achei melhor encerrar a audiência.
De outra feita a explicação não veio do réu, mas da vítima. Era um lusitano que havia caído da motocicleta e fraturado umas costelas quando o veículo em que trafegava foi abalroado pelo automóvel dirigido pelo réu. O curioso é que o acidente ocorrera numa sexta-feira à tarde, antevéspera de carnaval, e a soi disant vítima, como dissera o advogado na defesa prévia, só havia feito o Boletim de Ocorrência na quarta-feira de cinzas. O tal motociclista, ouvido por mim, esclareceu que, de fato, assim ocorrera. É que ele, naquele dia fatídico, seguia, tendo na garupa da moto sua namorada, para o Guarujá, onde passariam o carnaval. Não lhe havia parecido a ele que seus danos pessoais fossem tantos, motivo pelo qual somente na quarta-feira foi que, não suportando mais as dores, procurara o Pronto Socorro, quando soube da fratura das costelas. O doutor compreende, pois não? Acho que eu deveria ter respondido "pois sim".
Depoimento encerrado, entra agora na sala de audiência a primeira testemunha arrolada na chamada peça vestibular, que era a tal moça que a infeliz lusitana vítima conduzia na garupa da motocicleta. Sabe aquelas mulatas do Sargentelli, que naquele tempo apresentava um show para turistas ali na Paulista, o seu Squindô, squindô? Pois qualquer uma delas perderia para aquela que entrou rebolando na sala de audiências, vestido agarrado no corpo, coisa de Marina Montini, aquela mulatíssima que o Di Cavalcanti imortalizou em muitos de seus quadros e suas camas. O promotor, que era o Arthur Pagliusi, não conseguiu conter a estupefação. Trocamos um olhar malandro e nele recapitulamos toda a história. O tal lusitano deve ter ficado dias e dias, talvez meses, ou mesmo anos tentando convencer aquela mulata a fazer com ele um programa na praia. Justamente no dia em que consegue seu objetivo, feriado prolongado ainda por cima, vem esse calhorda desse motorista e quase lhe estraga o tão esperado programa. No Guarujá, seus gemidos, decorrentes dos cacos de costelas roçando uns nos outros, foram interpretados pela moça como expressão de algo mui diverso. O que, certamente, só pode ter aumentado o entusiasmo da moça e contribuído para agravar os ferimentos do motociclista.
Se é que as costelas não foram quebradas durante os festejos momísticos, como insinuou o defensor nas alegações finais.