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O TJ/SP e o dever de revelação: Equívocos na interpretação do fato não revelado na arbitragem e contrariedade ao posicionamento do STJ

terça-feira, 25 de março de 2025

Atualizado em 26 de março de 2025 11:08

Tema que permanece objeto de debates na arbitragem diz respeito ao dever de revelação do árbitro, previsto no art. 14, § 1º da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"1). A complexidade de tal tema gerou discussões profundas, em especial no meio internacional, culminando na edição das diretrizes da International Bar Association sobre conflitos de interesse na arbitragem internacional em 2014, e revistas em 2024 ("Diretrizes da IBA"). Tal regramento, objeto, inclusive, de importantes obras no meio doutrinário arbitral2, é, sem dúvida, o grande balizador do que se deve ou não revelar no âmbito de um processo arbitral.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), um dos mais especializados na discussão da matéria arbitral no Brasil, proveu recurso de apelação em que se discutia uma única questão: se omissão de um árbitro na revelação de um determinado fato poderia contaminar a sua imparcialidade no julgamento da causa. A resposta do TJSP, em julgado emanado da correspondente 27ª Câmara de Direito Privado, foi positiva. Eis a ementa do julgado:

"APELAÇÃO. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. Sentença de improcedência do pedido reformada. Alegação de quebra do dever de revelação e parcialidade de árbitro Aceitação incondicional do árbitro, durante o procedimento, com dúvida objetiva da apelante decorrente de revelações realizadas durante o trâmite procedimental. Quebra da boa-fé objetiva do árbitro. Descumprimento do dever de revelação pelo árbitro, que comunicou a preexistência de relações com advogado da parte apelada em casos específicos, após já iniciado o trâmite do procedimental arbitral, omitindo a participação em tribunal arbitral, após sua indicação. Relação que, por si só, consubstancia descumprimento da imparcialidade. RECURSO PROVIDO"3.

O julgado objeto da ementa acima transcrita comete um sério equívoco na aferição do chamado "fato não revelado".

O dever de revelação do árbitro, tanto em âmbito interno quanto internacional, possui caráter objetivo. Devem-se revelar fatos que, aos olhos de um terceiro observador razoável4, pudessem gerar alguma dúvida justificada na independência e imparcialidade do árbitro. Não é qualquer fato que deva ser revelado. Tal dever comporta a revelação de fatos de relevância material que possam gerar dúvida justificada acerca da isenção do julgador e sequer importaria na sua recusa, ainda que uma parte não se satisfizesse com tal revelação. O julgado objeto dessas linhas deixou de seguir essa premissa, inovando, ao decretar a nulidade de uma sentença arbitral por fato absolutamente irrelevante não relevado por um dos árbitros, qual seja, que havia composto tribunal arbitral no passado com um dos patronos da parte que o indicara no processo objeto que originou a decisão ora comentada.

O fato não revelado no caso ora comentado é irrelevante, pois o exercício da função de árbitro é caracterizado por uma missão de natureza jurisdicional de caráter temporário e é perfeitamente normal que pessoas que atuem no setor jurídico exerçam a função de árbitro5. Seja um advogado, professor universitário, magistrado aposentado, inter alia, a preferência pela indicação de um profissional do direito para exercer a função de árbitro ainda prevalece no correspondente meio. E é perfeitamente normal que pessoas que, por exemplo, sejam palestrantes numa mesma mesa de congresso, sejam docentes numa mesma instituição, ou já tenham mesmo atuado como advogados ex adversos em determinado caso, atuem juntas num painel arbitral. O caráter normal e habitual de tais situações é objeto da chamada lista verde das mencionas Diretrizes da IBA, em que necessidade de revelar é desnecessária, justamente por não ter o condão de criar a chamada "dúvida justificada"6-7.

Além disso, o julgado objeto dessas linhas vai na contramão do que fora recentemente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), num dos mais aplaudidos acórdãos do ano de 2024. No caso em referência, a correspondente Terceira Turma foi bastante clara e didática no que se refere à diferença entre fato não revelado e uma pretensa parcialidade do árbitro:

"não basta que o fato não revelado abale a confiança da parte, é preciso que ele demonstre a quebra de independência e imparcialidade do julgamento feito pelo árbitro. Para tanto, são necessárias provas contundentes, não bastando alegações subjetivas desprovidas de relevância no que tange aos seus impactos"8.

A despeito de a ementa do julgado em questão ter inserido o termo "quebra da boa-fé objetiva pelo árbitro", ao que parece, o inverso ocorreu. Uma análise detida dos autos mostra que as partes participaram da composição do tribunal arbitral, apresentaram alegações, produziram provas, e, os árbitros, por sua vez, apresentaram suas declarações de imparcialidade e cumpriram o dever de revelação imposto pelo art. 14, § 1º da Lei de Arbitragem.

O árbitro que é mencionado pelo acórdão em questão, inclusive, apresentou revelação superveniente, sobre fato objetivo relacionado a atuação de seu escritório em parceria com o escritório de advocacia da parte que o indicou no processo arbitral, tendo as partes aceito, sem ressalvas, a continuidade da participação do árbitro do caso. O fato não revelado diz respeito a questão muito menos ou nada relevante, se comparada à diligente e correta revelação superveniente.

A prevalecer o entendimento exposto pela turma julgadora da 27ª Câmara de Direito Privado do TJSP, além de gerar precedente tecnicamente equivocado e contrário ao entendimento idêntico já manifestado pelo STJ, de nada adiantará os esforços que as instituições arbitrais vêm empreendendo de modo a conferir maior transparência nas arbitragens, com a divulgação da composição dos tribunais arbitrais9, além de transferir ao árbitro o ônus do dever de revelar dúvida mínima10, pondo em xeque a própria higidez do sistema arbitral, e, ao fim e ao cabo, prestigiar a parte sucumbente da arbitragem, a qual, imbuída de má-fé, guarda informações não debatidas anteriormente, para apresentá-las no âmbito judicial e desfazer todo um trabalho feito com seriedade, esmero e competência11.

Adicionalmente, as mazelas do acórdão em questão não se resumem ao desfazimento injusto de um processo arbitral sério, bem conduzido e concluído. Além de causar potenciais prejuízos de natureza econômica ao implicitamente exigir do árbitro a revelação de dúvida completamente irrelevante para a aferição de sua imparcialidade, e, consequentemente, diminuir o leque de opções de possíveis candidatos ao posto de árbitro12, a decisão, ainda que de forma potencial, gera instabilidade no mercado (no caso da arbitragem em questão, de energia elétrica), caracterizado pela sua complexa estrutura, que objetiva agregar interesses imediatos das partes contratantes com os interesses externos dos demais agentes do mercado e da sociedade13.

Num momento em que a arbitragem se consolidou como o método preferencial do empresariado brasileiro para a resolução de disputas de natureza comercial, de complexidade fática e técnica, e está prestes a completar trinta anos de vigência, é essencial que os tribunais pátrios compreendam melhor o sentido e o escopo do dever e revelação, sempre levando em conta as diretrizes tanto nacionais quanto internacionais14 já estabelecidas e consolidadas sobre o assunto e, sobretudo, o conceito e a consequência de fato não revelado, bem como as estratégias processuais utilizadas pela parte que pretende desconstituir o julgado arbitral. Há aqui extenso campo para aplicação das penas da litigância de má-fé.

O exame minucioso de tais elementos é fundamental para a garantia de estabilidade do sistema arbitral brasileiro, que atrai não apenas o empresarial local, mas o internacional para resolução de determinadas disputas.

__________

1 Art. 14, § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.

2 PARK, William W. A fair fight Professional Guidelines in International Arbitration, Arbitration International, Oxford University Press, v. 30, n. 3, p. 409-428, 2014. No mesmo sentido, ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. A Versão 2024 das IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration: Alguns Comentários, Revista Brasileira de Arbitragem, v. 22, n. 83, pp. 118-130, 2024.

3 TJ/SP, 27ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº: 0024255-13.2023.8.26.0100, rel. Des. Alfredo Attié, j. 04.02.2025.

4 Conforme se depreende do julgamento da Suprema Corte do Reino Unido no caso Halliburton Company v. Chubb Bermuda Insurance Ltd., de 27/11/2020: "The assessment of the fair-minded and informed observer of whether there is a real possibility of bias is an objective assessment which has regard to the realities of international arbitration which I have discussed in paras 56-68 above and the customs and practices of the relevant field of arbitration.". No mesmo sentido das tendências internacionais, o Enunciado 97 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios dispõe que "O conceito de dúvida justificada na análise da independência e imparcialidade do árbitro deve observar critério objetivo e ser efetuado na visão de um terceiro que, com razoabilidade, analisaria a questão levando em consideração os fatos e as circunstâncias específicas.".

5 Ver, a esse respeito, ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. Imparcialidade dos Árbitros. São Paulo: Almedina, 2021 e GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function, International Arbitration Law Library, v. 55, Kluwer Law International 2020.

6 O texto da própria IBA Guidelines on Conflict of Interest é claro nesse sentido: "The Green List is a non-exhaustive list of specific situations where no appearance and no actual conflict of interest can exist either under the subjective or the objective standard. Thus, the arbitrator has no duty to disclose situations falling within the Green List. As stated in the Explanation to General Standard 3(a), the Green List reflects the fact that there is a limit to the duty to disclose, based on reasonableness". Fonte. Acesso em 14 mar. 2024.

7 Em sentido contrário, vide a opinião de BUNAZAR, Maurício Baptistella. Dever de revelação do árbitro: comentários com base na Apelação Cível 1038255-35.2022.8.26.0100, julgada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 14.12.2023, Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 41, ano 11, p. 471-486, out.-dez. 2024.

8 STJ - Terceira Turma, REsp nº 2.101.901/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.06.2024.

9 Ver, a esse respeito, exemplos como os da Corte Internacional de Arbitragem da CCI (Fonte:); e CAMARB. Acesso em 20 mar. 2025.

10 A esse respeito, criticando a chamada "dúvida mínima", ver DABUS, Rodrigo. O conceito de dúvida justificada no dever de revelação do árbitro, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 21, n. 81, p. 139-178, abr./jun. 2024.

11 A própria leitura dos autos do processo, que contempla diversas peças do processo arbitral, incluindo a respectiva sentença, comprovam tal assertiva.

12 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho e GUANDALINI, Bruno. Árbitros e arbitragens Parte II: o Projeto de Lei nº 3.293/2021, a limitação à função de árbitro e o prejuízo à eficiência da arbitragem no Brasil. Fonte. Acesso em 14 mar. 2025.

13 A esse respeito, ver GOMES, Gabriel Jamur. Relações contratuais de comercialização na regulação jurídica do mercado brasileiro de energia elétrica. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013, p. 194.

14 Além das já citadas IBA Guidelines, é digno de nota as diretrizes sobre dever de revelação elaboradas pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr"). Fonte. Acesso em 17 mar. 2025.