A tese da "porta giratória" e sua irrelevância para a aferição da imparcialidade dos árbitros
terça-feira, 30 de abril de 2024
Atualizado em 29 de abril de 2024 10:35
Tema dos mais comentados ultimamente na jurisprudência brasileira diz respeito à imparcialidade das pessoas que exercem a função de árbitro. Tal tema foi enfrentado em decisões recentes de lavra do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), sendo que, em uma delas, foi feita a menção ao termo "porta giratória" como fundamento para justificar a ausência de imparcialidade do árbitro e, ao fim e ao cabo, suspender o curso da execução da sentença arbitral ou mesmo anulá-la1.
No caso em questão, o TJSP entendeu que o "Judiciário deve ser muito severo quando se depara com demandas fundadas em impedimento ou suspeição de árbitros. É imperioso cuidar dessas situações ao menos com o mesmo rigor dedicado ao impedimento ou à suspeição de juiz. Afinal, os árbitros não têm a mesma independência que as prerrogativas constitucionais da Magistratura procuram assegurar aos juízes; não têm, consequentemente a mesma proteção contra as situações que, no dia a dia dos julgamentos, podem caracterizar situação de constrangimento a livre voto (...)"2.
Ademais, constou da mesma decisão, a seguinte passagem: "O caso em exame remete àquilo que, em doutrina estrangeira, se convencionou depreciativamente denominar revolving door (porta giratória): situação, frequente no mundo da arbitragem, de uma pequena quantidade de pessoas passar a ocupar (como advogados, árbitros, testemunhas técnicas, pareceristas, dirigentes de Câmara Arbitral) todas as cadeiras, a desempenhar todos os papéis. Comprometem-se, com isso, os mencionados princípios fundamentais do sistema arbitral de resolução de disputas, especialmente a neutralidade e a imparcialidade (...)"3.
Apesar de ser compreensível a posição do judiciário a respeito do rigor que dever ser imprimido na aferição de eventual impedimento ou suspeição do árbitro, com a máxima vênia, o voto vencedor declarado incorre em equívoco de fundamentação ao entender que a aludida tese da "porta giratória" comprometeria a neutralidade e imparcialidade dos árbitros.
O estudo a respeito da mencionada porta giratória, citada pelo referido decisum, partiria do pressuposto de que uma pequena quantidade de pessoas passaria a ocupar (como advogados, árbitros, testemunhas técnicas, pareceristas, dirigentes de Câmara Arbitral) todas as cadeiras, a desempenhar todos os papéis, o que poria em xeque a imparcialidade dos árbitros. Ao menos, a parte do estudo mencionado no acórdão em questão leva em conta essa percepção.
No entanto, o estudo a respeito da "porta giratória", desenvolvido por acadêmicos da Universidade de Bergen e Universidade de Oslo, na Noruega4, leva em consideração, essencialmente, as arbitragens de investimento, as quais possuem características bastantes peculiares e diferentes em relação às arbitragens comerciais (que são as que prevalecem no Brasil e na maior parte do mundo).
Arbitragem de investimento se caracteriza como um procedimento para resolver disputas entre investidores estrangeiros e Estados anfitriões e, "desde meados do século XX, um dos principais mecanismos de proteção a investidores estrangeiros em face de condutas estatais lesivas a seus bens e interesses, diante das naturais dificuldades em se buscar a reparação destes danos por meio do Direito interno, seja no país receptor do investimento, seja no país do investidor"5. Diante do caráter internacional das operações de investimentos estrangeiros e a necessidade de um foro neutro para a resolução de eventuais disputas entre o investidor e o Estado receptor, foi assinada em 18 de março de 1965 a Convenção de Washington, por iniciativa do Banco Mundial, com o objetivo de criar um mecanismo de resolução de controvérsias relativos a investimentos entre Estados e nacionais de Outros Estados. Por meio da referida convenção, criou-se o Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos ("ICSID"), instituição que busca facilitar a mediação e a arbitragem de litígios entre Estados signatários e entre investidores estrangeiros e esses mesmos Estados.
Naturalmente, diante do número limitado de players no mercado (o que ocorre com frequência nas arbitragens de investimento e também se revela presente nas arbitragens comerciais) é absolutamente normal e usual que pessoas que atuem como advogados, possam, se o caso, atuarem como árbitros. As especificidades inerentes ao sistema arbitral fazem com que a pessoa que aspire a advogar em processos arbitrais ou tenha a ambição de atuar como árbitro, tenha conhecimento, não só dos aspectos processuais da arbitragem (bastante peculiares em relação ao do processo estatal) mas que igualmente tenha experiência razoável nos aspectos de mérito da demanda (como, por exemplo, aspectos do direito da construção, do direito do agronegócio, do direito da energia elétrica, inter alia). Aliar tais conhecimentos não é tarefa fácil, o que acaba proporcionando um limitado número de players, que ora exercem uma função (advogados) ora outras (exercício da função de árbitro)6. A esse respeito, é digna de nota as conclusões alcançadas por Carlos Eduardo Stefen Elias, em sua elogiada obra intitulada "Imparcialidade dos Árbitros":
"Em qualquer das hipóteses, deve ser notado o critério de: (...) amplitude do mercado de árbitros disponíveis e sua especialidade na matéria objeto de disputa. De fato, quanto menor o número de especialistas disponíveis para funcionar como árbitro em determinado conflito (por envolver conhecimento técnico, jurídico ou não, detido por poucos), menos aparente será a parcialidade do árbitro e mais provável será o seu contato com as partes ou com os demais envolvidos no processo arbitral"7.
Ainda, a célebre tese de doutoramento de Bruno Guandalini, esclarece, com base em minuciosa pesquisa científica, que o mercado de árbitros não é apenas importante do ponto de vista econômico, mas que não contém qualquer resquício de imoralidade ou de ausência de ética. Assim, afirma o referido autor:
"Several factors have turned the arbitrator's function into a real market object. At first glance, the expansion of the arbitration market would be considered the first and main reason. Mr. Mosk and Mr. Ginsburg summarize that the growth of international arbitration has been caused by the increase in international trade, the reduction of political and trade barriers, the growth of international law firms, and the expansion of arbitration itself as an alternative dispute resolution method. But it is also attributed to systemic factors such as the continuous development of a global legislative framework supportive of arbitration, arbitration-friendly reforms at the judicial and legislative level in different jurisdictions, and the recognition of the advantages of arbitration by end users"8.
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"Despite such critiques, it was shown that there is no moral or unethical problem if the arbitrator is motivated by remuneration or by market forces as long as she respects formal or procedural justice. It is more important that the arbitrator respects due process, equality, freedom to decide, and efficiency. Inefficient procedure is immoral, and the market for arbitrators could generate the motivation and competition necessary to contribute to better arbitrator's services"9.
O que se pretende demonstrar nessas brevíssimas linhas, e com o objetivo de não destoar a atenção dos operadores da arbitragem, é que a invocação da tese da "porta giratória" não se revela substancialmente concreta a ponto de caracterizar a imparcialidade do árbitro. Tratada de forma genérica e dissociada da realidade brasileira, tal tese constitui muito mais uma conjectura ou uma constatação real do quão restrita e especializada é a prática arbitral. Dedicada à verificação de dados existentes nas arbitragens de investimentos, não pode tal tese ostentar qualquer utilidade para se aferir a imparcialidade da pessoa que exerce a função de árbitro. Como bem afirma Bruno Guandalini, "The moral legitimacy of the arbitrator's function will only be threatened if the arbitrator changes her behavior toward her own interests to the detriment of the parties' best interests (.)"10. A mera tese de suposta existência de uma "porta giratória", não é, com efeito, suficiente para retirar a imparcialidade da pessoa que exerce a função de árbitro.
Por fim, o grande balizador da imparcialidade do árbitro é o cumprimento do dever de revelação, previsto no art. 14, 1º da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem")11. É a partir da revelação, considerando, por óbvio, todas suas nuances e regras delimitadoras do que é ou não é revelável, que se garante a imparcialidade do árbitro e se preserva a higidez do processo arbitral12.
Que tais considerações sejam observadas pelas partes contendentes, advogados e, especialmente pelos magistrados, em ações que tenham por objeto destruir um trabalho realizado com esmero e segurança, pela simples irresignação com o resultado da arbitragem.
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1 A esse respeito: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento nº 2166470-26.2019.8.26.0000, rel. Des. Fortes Barbosa, j. 09 de outubro de 2019.
2 Trecho da Declaração de Voto Vencedor, de lavra do Des. Cesar Ciampolini nos autos do Agravo de Instrumento nº 2166470-26.2019.8.26.0000.
3 Trecho da Declaração de Voto Vencedor, de lavra do Des. Cesar Ciampolini nos autos do Agravo de Instrumento nº 2166470-26.2019.8.26.0000.
4 LANGFORD, Malcom, BEHN, Daniel e LIE, Runar Hilleren. The Revolving Door in International Investment Arbitration, in Journal of International Economic Law, Oxford University Press, 2017, p. 301-331.
5 FARIAS, Rodrigo Vieira. Arbitragem de Investimentos: um breve panorama in R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 164-186, Mai.-Ago. 2022.
6 A esse respeito, leciona Carlos Eduardo Stefen Elias, ao explicar sobre a proteção do "mercado simbólico inerente à arbitragem: Dada a amplitude ainda restrita dos participantes do mercado da arbitragem e a proteção do seu capital simbólico, é comum que os coárbitros escolham como presidente do tribunal arbitral o profissional que conhecem e em quem, de certa foram, confiam. Tal confiança pode ser retribuída na escolha da presidência de outro tribunal futuro. Não só. Esses mesmos profissionais frequentemente trocam os papéis não apenas na constituição dos tribunais arbitrais, mas também quando um deles é o advogado de uma das partes e nomeia outro profissional do grupo para a função de coárbitro".
7 ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. Imparcialidade dos Árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 145.
8 GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function. International Arbitration Law Library, Volume 55, Kluwer Law International, 2020, p. 59.
9 GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function. International Arbitration Law Library, Volume 55, Kluwer Law International, 2020, p. 69.
10 GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function. International Arbitration Law Library, Volume 55, Kluwer Law International, 2020, p. 191.
11 Art. 14, § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.
12 A esse respeito, merece destaque as s Diretrizes do CBAr sobre o dever de revelação do(a) árbitro(a), que podem ser acessadas no seguinte link: diretrizes-do-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa.pdf. Acesso em 28 abr. 2024.