A relevância da fixação de pontos controvertidos como garantia de segurança do processo arbitral
terça-feira, 27 de fevereiro de 2024
Atualizado às 07:43
Muito já se discutiu na doutrina arbitral, tanto nacional quanto estrangeira, a importância da fixação dos pedidos no instrumento denominado termo de arbitragem, para o desenvolvimento regular e seguro do processo arbitral. Vale relembrar aqui que o termo de arbitragem é o instrumento em que há a delimitação do objeto da lide e contém os pedidos das partes a serem, necessariamente, detalhados e quantificados nas alegações escritas. Isso representa o que a doutrina denomina "estabilização da demanda"1.
No entanto, um ponto de igual importância para a garantia de segurança do processo arbitral diz respeito à fixação dos pontos controvertidos da respectiva demanda. Tal fixação ocorre, normalmente, quando as partes especificam as provas que pretendem produzir e apresentam, seja de forma conjunta ou individual, os pontos da demanda que entendem ser controvertidos e que deverão ser objeto de análise e decisão pelo tribunal arbitral.
Apesar de o ponto controvertido não se confundir com a figura jurídica do pedido propriamente dito, a necessidade de sua fixação no âmbito de um processo arbitral não configura uma prática uníssona. Em certos casos, os julgadores possuem um entendimento que a fixação prévia de pontos controvertidos limitaria o poder investigatório do tribunal arbitral, o que, ao fim e ao cabo, prejudicaria o julgamento da demanda. Tal posição, apesar de respeitável, é minoritária, sejam em âmbito doméstico, mas, principalmente, na seara internacional. Com efeito, a identificação e fixação dos pontos controvertidos ao final da fase postulatória do processo arbitral não apenas garante previsibilidade e, pois, segurança, às partes contendentes no que realmente interessa a ser investigado, garantindo-se fluidez da fase instrutória e higidez da futura sentença2-3, mas, ainda, promove celeridade e eficiência no julgamento da demanda.
A esse respeito, confira-se o que dispõem as "UNCITRAL Notes on Organizing Arbitral proceedings"4:
"(a) Should a list of points at issue be prepared
43. In considering the parties' allegations and arguments, the arbitral tribunal may come to the conclusion that it would be useful for it or for the parties to prepare, for analytical purposes and for ease of discussion, a list of the points at issue, as opposed to those that are undisputed. If the arbitral tribunal determines that the advantages of working on the basis of such a list outweigh the disadvantages, it chooses the appropriate stage of the proceedings for preparing a list, bearing in mind also that subsequent developments in the proceedings may require a revision of the points at issue. Such an identification of points at issue might help to concentrate on the essential matters, to reduce the number of points at issue by agreement of the parties, and to select the best and most economical process for resolving the dispute. However, possible disadvantages of preparing such a list include delay, adverse effect on the flexibility of the proceedings, or unnecessary disagreements about whether the arbitral tribunal has decided all issues submitted to it or whether the award contains decisions on matters beyond the scope of the submission to arbitration. The terms of reference required under some arbitration rules, or in agreements of parties, may serve the same purpose as the above-described list of points at issue." [p. 17]
"(b) In which order should the points at issue be decided
44. While it is often appropriate to deal with all the points at issue collectively, the arbitral tribunal might decide to take them up during the proceedings in a particular order. The order may be due to a point being preliminary relative to another (e.g. a decision on the jurisdiction of the arbitral tribunal is preliminary to consideration of substantive issues, or the issue of responsibility for a breach of contract is preliminary to the issue of the resulting damages). A particular order may be decided also when the breach of various contracts is in dispute or when damages arising from various events are claimed.
45. If the arbitral tribunal has adopted a particular order of deciding points at issue, it might consider it appropriate to issue a decision on one of the points earlier than on the other ones. This might be done, for example, when a discrete part of a claim is ready for decision while the other parts still require extensive consideration, or when it is expected that after deciding certain issues the parties might be more inclined to settle the remaining ones. Such earlier decisions are referred to by expressions such as "partial", "interlocutory" or "interim" awards or decisions, depending on the type of issue dealt with and on whether the decision is final with respect to the issue it resolves. Questions that might be the subject of such decisions are, for example, jurisdiction of the arbitral tribunal, interim measures of protection, or the liability of a party." [p. 18]
No mesmo sentido dispõem as diretrizes do Chartered Institute of Arbitrators ("CIArb") sobre redação de sentenças arbitrais5:
"2. Awards should also contain the following essential elements:
i) the names and addresses of the arbitrators, the parties and their legal representatives;
ii) the terms of the arbitration agreement between the parties;
iii) a summary of the facts and procedure including how the dispute arose;
iv) a summary of the issues and the respective positions of the parties;
v) an analysis of the arbitrators' findings as to the facts and application of the law to these
facts; and
vi) operative part containing the decision(s)" [p. 12]
[.]
"b) The award should also clearly identify and present in a logical order the issues which need to be decided. They are often phrased as questions. The issues can be found in the parties' submissions or the arbitrators themselves can draft a list based on the parties' submissions. It is good practice to request the parties to provide a list, preferably agreed between them, and/or ask them to comment on the list prepared by the arbitrators in order to make sure that all of the disputed issues have been included and that all matters fall within the arbitrators' jurisdiction. In any case, the list of issues should be presented in a logical sequence and in the order in which they will be discussed". [p. 13]
O direito, como bem lembra Mário Guimarães, é inseparável dos fatos. E sem fato jurígeno, não há sentido na atuação de quem exerce a função de julgador. Regra básica e útil para qualquer julgamento, já dizia o referido autor, é a "fixação dos fatos" (nos quais se englobam os pontos controvertidos e as "regras jurídicas que a regulam"6). Tal ensinamento, destinado ao processo estatal é claramente aplicável, a qualquer processo, inclusive o arbitral.
Levando-se em consideração que o processo possui início, meio e fim, não comportando recurso contra a sentença arbitral7, entende-se ser de bom alvitre que as partes colaborem com o processamento seguro do processo, identificando, seja de forma conjunta (o que é sempre preferencial8) ou separadamente, os pontos controvertidos da demanda. Trata-se de uma via de mão dupla: a cooperação das partes nesse ponto certamente permitirá que os julgadores promovam um julgamento célere, eficiente, eficaz, mas, principalmente, seguro, do processo arbitral, entregando-se, de forma definitiva9, a tutela jurisdicional.
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1 "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral." (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005). No mesmo sentido, aduz Cândido Rangel Dinamarco: "Seja como for, o objeto do processo arbitral é determinado sempre pelo pedido endereçado aos árbitros, qualquer que haja sido o iter de sua formulação. Quando o compromisso não for claro, o pedido será especificado por solicitação dos árbitros, chegando-se com isso à estabilização da demanda (CPC, art. 294), que outra coisa não é senão a definitiva delimitação do objeto do processo arbitral. Quando tudo houver sido feito, havendo as partes ajustado concretamente um compromisso e nomeado os árbitros, vindo estes a aceitar o encargo, o instrumento desse ato complexo terá desde logo definido o objeto do processo arbitral que assim se instaura, cabendo ao conselho arbitral pronunciar-se afinal sobre a divergência pendente entre os contendores." (DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO, Andre Gomma de (ORG.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação - volume 2. Brasília/DF/Brasil: Grupos de Pesquisa, 2003. p.19-33).
2 Em arbitragens administradas pela Câmara de Comércio Internacional ("CCI"), o chamado "ICC Award Checklist" estabelece: "7. Parte dispositiva, sede da arbitragem, data, assinatura [...] B. A sentença arbitral considera todas as questões e todas as demandas das partes (que deverão estar incluídas com clareza e exatidão em alguma parte da sentença arbitral, comparadas com a Ata de Missão), inclusive seus pedidos mais recentes, e decide apenas tais questões e demandas (especificar claramente se determinadas demandas ficam reservadas para uma ou mais sentenças arbitrais futuras). Disponível em: ICC Lista de verificação para sentenças arbitrais da CCI (iccwbo.org). Acesso em 24 fev. 2024.
3 A esse respeito, vale citar o Guia para Elaboração de Sentenças Arbitrais da Internacional Bar Association (IBA). "4.6 Pedidos das partes e identificação de pontos controvertidos. A sentença arbitral deve descrever os pedidos das partes conforme o seu status no momento do encerramento da instrução, isto é, considerando todos os pedidos, reconvenções ou outros requerimentos que exijam uma decisão do tribunal arbitral, incluindo quaisquer emendas aos pedidos iniciais das partes, desistências ou renúncias. A sentença arbitral deve declarar os pontos controvertidos a serem decididos. Às vezes, esses pontos são identificados pelas partes ou pelo tribunal arbitral mediante referência às manifestações das partes. Os pedidos das partes e os pontos controvertidos a serem decididos delimitam, em conjunto, o escopo do mandato do tribunal arbitral. Pode-se utilizá-los como um checklist para assegurar que o tribunal arbitral não exceda o seu mandato ou, inversamente, deixe de decidir questões que exijam resolução. Quando for adequado, a sentença arbitral também pode identificar que a resolução de certas questões depende do resultado de outras, razão pela qual tal resolução só se faz necessária após a decisão da questão preliminar (por exemplo, uma decisão sobre danos depende de uma determinação prévia sobre responsabilidade" (p. 43). Disponível em: guia-para-elaboracao-de-sentencas-arbitrais-da-iba-traducao-e-notas.pdf (cbar.org.br). Acesso em 24 fev. 2024.
4 Disponível em: UNCITRAL Notes on Organizing Arbitral Proceedings. Acesso em 24 fev. 2024.
5 Disponível em: drafting-arbitral-awards-part-i-_-general-2021.pdf (ciarb.org). Acesso em 24 fev. 2024.
6 Nas exatas palavras do referido autor: "Nem se pretenda que o Direito é inseparável dos fatos. Há um sentido em que se diz, com verdade, que o Direito é inseparável do fato. É que o direito nasce do fato - jus ex facto oritur. Sem um fato jurígeno, não há ingresso nos pretórios, porque juízes e tribunais não têm a função de discutir teses acadêmicas, que não tenha aplicação a determinado feito. Mas isso não exclui a possibilidade de se extremarem no julgamento, duas operações intelectuais: a fixação exata dos fatos e a das regras jurídicas que os regulam". (O Juiz e a Função Jurisdicional, Forense, 1958, § 208, pág. 78)
7 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 24 fev. 2024.
8 Prática, aliás, que está em harmonia com o disposto no art. 6º do Código de Processo Civil ("CPC"), cujo caráter principiológico e plenamente aplicável a qualquer arbitragem: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". A respeito desse dispositivo, anota José Rogério Cruz e Tucci: "Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado 'dever de cooperação recíproca em prol da efetividade', o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal." (Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 13.)
9 Na forma do art. 31 da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), a sentença arbitral configura título executivo judicial: "A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo".