O aprimoramento da prática arbitral no Brasil
terça-feira, 19 de dezembro de 2023
Atualizado às 07:46
É dito, com certa frequência, que a arbitragem representa um método extrajudicial de resolução de conflitos devidamente consolidado no Brasil. Tal afirmativa é certamente verdadeira, considerando os avanços realizados ao campo arbitral, seja pelo aprimoramento da correspondente legislação, pela evolução jurisprudencial, pela especialização dos advogados e partes atuantes nesse setor, e, sobretudo, pelos brilhantes trabalhos acadêmicos evolvendo o tema arbitral que surgiram (continuam a surgir) ao longo do tempo1.
Enquanto, em teoria, as leis e a jurisprudência caminham no sentido de comprovar a plena consolidação da arbitragem no Brasil, em particular, o ano de 2023 demonstrou uma notória evolução de questões atinentes à prática arbitral. Faz-se aqui menção às mudanças que surgiram no âmbito dos regulamentos de arbitragem de renomadas instituições, de importantes diretrizes que auxiliam a balizam certos pontos sensíveis da arbitragem e pesquisas empíricas que demonstram o quão importante representa tal meio para o empresariado nacional e estrangeiro (sobretudo, os que investem no Brasil).
Inicia-se aqui pelas mudanças regulamentares. O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá ("CAM-CCBC"), em abril de 20232, criou regulamento específico para arbitragens societárias, com destaque para regras sobre terceiros intervenientes na relação jurídica, chamado pelo referido regulamento de "Terceiros Afetados". As normas criadas pelo novo regulamento societário são úteis e compatíveis com o sistema arbitral (caracterizado por ter início, meio e fim, com a emissão de uma sentença final irrecorrível3) na medida em que estabelece os direitos de terceiras partes que não integraram eventual processo arbitral e precisam ser afetadas pela decisão final. E, além disso, é coerente com a jurisprudência dos tribunais superiores, em especial a do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), no sentido de que, para a "formação do livre convencimento motivado acerca da inviabilidade de manutenção da empresa dissolvenda, em decorrência de quebra da liame subjetivo dos sócios, é imprescindível a citação de cada um dos acionistas, em observância ao devido processo legal substancial"4 (sic).
Além disso, o próprio CAM-CCBC editou a Norma Complementar nº 04/20235, por meio da qual ampliou e aprimorou o seu questionário modelo para a verificação de conflito de interesses e disponibilidade da pessoa a exercer a função de árbitro. Com efeito, o novo questionário modelo fez constar regras as quais já vinham sendo objeto de pedidos específicos das partes antes da constituição do tribunal arbitral, tais como aquelas atinentes à relação dos árbitros indicados com os advogados das partes, por exemplo: se o profissional indicado para exercer a função de árbitro (i) tem ou já teve relação de negócio com os integrantes dos escritórios envolvidos na arbitragem, nos últimos três anos; (ii) se já atuou em conjunto com os escritórios de advocacia que representam as partes, nos últimos três anos; (iii) se tem relação de amizade íntima ou inimizade com advogados que representam as partes no processo arbitral; (iv) se já foi nomeado pelo escritório de advocacia que representa alguma das partes no processo mais que três vezes, nos últimos três anos; (v) se já emitiu opiniões legais ou pareceres jurídicos para o escritório de advocacia atuante a arbitragem em número superior a três, nos últimos três anos; (vi) se está atuando em conjunto com o patrono de uma das partes em um mesmo tribunal arbitral em outra arbitragem.
O acréscimo de tais questionamentos não só seguem a prática que vinha sendo adotada nas arbitragens domésticas, levam em consideração o aumento da prática arbitral no Brasil, com o aumento de casos, advogados especialistas, instituições arbitrais, mas, o mais importante, possuem o condão dar maior transparência ao processo acelerar o trâmite de constituição dos tribunais arbitrais.
Na linha do referido tema, o Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr"), elaborou em 2023 diretrizes sobre o dever de revelação do árbitro6, as quais, assim como tratado acima, levam em consideração as diretrizes internacionais sobre o mesmo tema, mundialmente aceitas, mas, o que é imperioso, o crescimento da arbitragem brasileira. E dá subsídios complementares ao disposto no art. 14, § 1º da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), eis que contempla situações não dispostas na legislação, mas que devem ser levadas em consideração para a sua correta interpretação. Algumas dessas regras não dispostas em lei mas que a complementam são dignas de nota: a regra 3, por exemplo, afasta a tese de que a ausência de revelação implicaria ausência de imparcialidade do árbitro, o que é muito importante para afastar impugnações frívolas e comportamentos inadequados de partes que usam tais argumentos para retardar o andamento do processo arbitral ou questionar a respectiva sentença: "Eventual omissão no exercício do dever de revelação do(a) árbitro(a) não implica, necessariamente, falta de independência ou imparcialidade deste(a). Eventual alegação de falta de independência ou imparcialidade daí decorrente deverá ser aferida à luz da natureza e da relevância do fato não revelado, conforme a visão de um terceiro que, com razoabilidade, analisaria a questão e as circunstâncias do caso concreto".
No campo processual, merecem destaque as regras a respeito da produção antecipada de provas em arbitragens, expedidas pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara Americana de Comércio ("CAM-AMCHAM"), colocando em prática entendimento jurisprudencial recente a respeito da competência e jurisdição para apreciação da prova, requerida em caráter antecipado, a qual pertence ao árbitro7. Nesse sentido, a referida instituição expediu a Resolução Administrativa nº 3/23 nos termos da qual, "O Conselho Consultivo do Centro de Arbitragem e Mediação AMCHAM ("CAM AMCHAM"), no exercício de suas atribuições, previstas no Estatuto Social, decide expedir a seguinte resolução sobre a possibilidade de utilização do procedimento de árbitro de emergência para a hipótese de necessidade de produção antecipada de provas nas arbitragens administradas pelo CAM AMCHAM"8.
Em termos gerais, na linha da referida resolução, em arbitragens administradas pelo CAM-AMCHAM, e, no caso de haver a necessidade de produção antecipada de provas, sem que haja urgência, tal pretensão deve ser deduzida perante árbitro de emergência, cuja competência e atribuição se limitará à condução do respectivo processo antecipatório. A utilidade dessa resolução se dá, notadamente, pelo fato de a parte interessada poder produzir, em caráter antecipado, provas periciais, documentais ou testemunhais, quando esta for suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio de solução de conflitos e/ou quando o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou mesmo evitar a instauração da arbitragem.
Por último, e não menos importante, o CBAr, em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria ("ABJ") elaborou e publicou pesquisa em 2023 a respeito de processos relacionados à arbitragem, em trâmite perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. As conclusões alcançadas pela referida pesquisa demonstram prestígio que é dado à arbitragem pelo judiciário paulista. Nesse sentido, alguns itens conclusivos da pesquisa merecem ser citados: (i) "A maioria das ações judiciais analisadas na pesquisa tem por objeto dar suporte à jurisdição privada (ações de suporte) e não a desafiar (ações de controle)"; (ii) "A maioria das ações judiciais analisadas na pesquisa tem por objeto dar suporte à jurisdição privada (ações de suporte) e não a desafiar (ações de controle)" e (iii) "As varas especializadas da comarca de São Paulo atuam de forma complementar e oferecendo suporte à jurisdição arbitral através da análise de pedidos de medidas de urgência pré-arbitrais, da instituição de juízos arbitrais e do cumprimento de sentenças arbitrais, respeitando o mecanismo de resolução de controvérsias escolhido pelas partes e anulando sentenças arbitrais de forma excepcional"9.
Os pontos colocados nessas breves linhas demonstram que os players da arbitragem estão atentos às novas práticas, novos standards, novas regras que servem para aprimorar o instituto o qual, na atualidade, é o mais importante método de resolução extrajudicial de conflitos empresariais existente.
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1 Ver, a esse respeito, os trabalhos acadêmicos divulgados no "Banco de Teses" do Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr"). Fonte: Banco de Teses « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2023.
2 Regras criadas por meio da Norma Complementar n. 02/2023. Fonte: Norma Complementar 02/2023 - Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (ccbc.org.br). Acesso em 17 dez. 2023.
3 A esse respeito ver Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 17 dez. 2023.
4 REsp, n. 1.303.284-PR, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16.04.2013, DJe:13.05.2013.
5 Fonte: Norma Complementar 04/2023 - Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (ccbc.org.br). Acesso em 17 dez. 2023.
6 A íntegra das diretrizes podem ser verificadas em: Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o dever de revelação do(a) árbitro(a) « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2023.
7 Nesse sentido, cita-se parte da ementa do referido acórdão: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS, COM FUNDAMENTO NOS INCISOS II E III DO ART. 381 DO CPC/2015 (DESVINCULADA, PORTANTO, DO REQUISITO DE URGÊNCIA/CAUTELARIDADE) PROMOVIDA PERANTE A JURISDIÇÃO ESTATAL ANTES DA INSTAURAÇÃO DE ARBITRAGEM. IMPOSSIBILIDADE. NÃO INSTAURAÇÃO DA COMPETÊNCIA PROVISÓRIA DA JURISDIÇÃO ESTATAL, EM COOPERAÇÃO (ANTE A AUSÊNCIA DO REQUISITO DE URGÊNCIA). RECONHECIMENTO. INTERPRETAÇÃO, SEGUNDO O NOVO TRATAMENTO DADO ÀS AÇÕES PROBATÓRIAS AUTÔNOMAS (DIREITO AUTÔNOMO À PROVA) PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. RECURSO ESPECIAL PROVIDO (.). REsp nº 2.023.615-SP, Terceira Turma, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 14.03.2023.
8 A íntegra da Resolução Administrativa n. 3/23 pode ser encontrada em: resolucao-administrativa-n3-2023.pdf (amcham.com.br). Acesso em 17 dez. 2023.
9 A íntegra da referida pesquisa pode ser encontrada em: Observatório da Arbitragem - ABJ e CBAr « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2023.