O mau uso do direito comparado na arbitragem
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Atualizado às 08:40
Recentemente completou-se vinte e sete anos da promulgação da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). Durante esse período, pode se dizer, com segurança, que o Brasil é um dos mais importantes players da arbitragem no mundo. Evidentemente, não se pode descartar a evolução da prática, das orientações jurisprudenciais e, claro, dos inúmeros trabalhos acadêmicos que surgem a cada ano, sempre pensando no aprimoramento do instituto. Um ponto de apoio à eventual reforma legislativa, seja para incluir ou excluir determinada regra, é a ciência do direito comparado. Matéria raramente explorada na academia jurídica brasileira, a força e importância do direito comparado conduzem a doutrina a classificá-lo como sendo mais do que um método, mas uma verdadeira disciplina jurídica autônoma1.
Réné David já dizia que que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o direito nacional2. Por outro lado, é sempre importante lembrar que a ferramenta do direito comparado deve ser utilizada respeitando-se os aspectos culturais3 de modo a que se alcance uma melhor compreensão do direito pátrio. No caso objeto dessas linhas, deve-se analisar regras dispostas em corpo estrangeiro de normas para fins de melhor compreensão ou mesmo mudança do nosso sistema.
O dito sistema, que, funciona em sua plenitude, é o sistema arbitral brasileiro. Com efeito, tem-se que sua concepção objetivou a estruturação de processo concentrado e sistêmico4, de início, meio e fim, com regras fundadas na ampla liberdade e autonomia das partes5. De forma oportuna, o anteprojeto de aludida lei, capitaneado por Carlos Alberto Carmona, Pedro A. Batista Martins e Selma Ferreira Lemes, se baseou em experiências alheias, isto é, no direito comparado. No caso do Brasil, a base de apoio para a redação do anteprojeto de lei foi a antiga lei espanhola de arbitragem, bem como a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da UNCITRAL de 1985 ("Lei Modelo").
No âmbito de um estudo a respeito de eventual mudança legislativa, aprimoramento de um sistema ou mesmo interpretação de uma regra contratual, o comparatista deve ser justo e isento. É preciso avaliar, de forma aprofundada, convergências e divergências entre diversos ordenamentos para que se encontre uma solução adequada. A mera extração de uma regra isolada de um conjunto normativo alienígena para implementação no ordenamento jurídico doméstico foge ao correto exercício comparativo6. Como diria Rodolfo Sacco, uma das maiores referências do direito comparado, "o comparatista [...] não pode transferir uma noção de um sistema estranho ao próprio sistema conceitual sem tomar certas precauções. Ele deve, isto sim, buscar nas regras operacionais os denominadores comuns dos diversos sistemas conceituais, para avaliar divergências e concordâncias"7.
Na arbitragem, seja ela doméstica ou internacional, são inquestionáveis os benefícios da adoção de uma perspectiva comparatista. Exemplo maior disso é a própria legislação brasileira, elaborada com cautela, ciosa da verdadeira natureza do sistema arbitral e, por evidente, de sua autonomia, e do contexto em que inserido o Brasil no plano do direito processual e, certamente, no plano da cultura do conflito8.
Nesse plano, tem-se que uma das principais características do sistema arbitral brasileiro é a impossibilidade de revisão de mérito da sentença arbitral. Assim está previsto no art. 18 da Lei de Arbitragem: "O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário". A vedação à revisão do mérito da decisão arbitral nada mais é do que tecnicidade concebida pelo legislador, em atenção aos aspectos jurídicos e culturais do Estado9 e, nessa seara, tem a sua razão de ser10.
No entanto, no alto de seus vinte e sete anos de existência e de seu inegável sucesso, a arbitragem brasileira tem sido alvo de discussões que pretendem a inclusão de um item como forma de subterfúgio para rever, de forma indevida, o mérito da sentença arbitral: a ordem pública.
A ordem pública, é, com efeito, um dos mais difíceis temas enfrentados no direito e deve ser analisada com cautela. Segundo a lição do saudoso Jacob Dolinger: "Diríamos que o princípio da ordem pública é o reflexo da filosofia sócio-política imanente no sistema jurídico estatal, que ele representa a moral básica de uma noção e que protege as necessidades econômicas do Estado. A ordem pública encerra, assim, os planos filosófico, político, jurídico, moral e econômico de todo Estado constituído"11.
A tese de que a ordem pública (em sentido genérico) deveria ser abarcada como uma das hipóteses de anulação de sentenças arbitrais não se sustenta. A uma porque, não há lacuna legislativa neste ponto. O art. 32 da Lei de Arbitragem possui um rol taxativo para hipóteses de anulação da sentença arbitral no âmbito doméstico e neles não se encontra o item "ordem pública". Mas isso não impede de se chegar à conclusão de que o princípio da ordem pública está presente naquela disposição. Esse é o entendimento de Carlos Alberto Carmona, para quem: "A ação anulatória implantada em nosso sistema não se presta, bem se vê, a rever a justiça da decisão ou o fundo da controvérsia, mas apenas a desconstituir os efeitos da decisão arbitral por inobservância ou infração de matérias de ordem pública que o sistema legal impõe como indispensáveis à manutenção da ordem jurídica. Estas matérias do art. 32 "sintetizam o Estado na administração da justiça"12.
O pensamento acima é respaldado por Ricardo de Carvalho Aprigliano, para quem: "Na maior parte das vezes, pode-se afirmar com relativa facilidade que tais normas se enquadram no conceito mais geral de "interesse público", aspecto fundamental e que determina os contornos da ordem pública em todas as suas ramificações. Tais normas regulam relações que transcendem ao mero interesse das partes, para assumir uma faceta mais ampla, que interessa à ordem pública"13.
Ademais, o art. 39, inciso II da Lei de Arbitragem, aliado à Convenção de Nova York sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958, ratificada pelo Brasil em 2002 ("CNY")14, prevê a violação da ordem pública como fator de não reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira em território brasileiro.
É evidente que a Lei de Arbitragem fez constar a disposição segundo a qual a sentença arbitral estrangeira não pode ser homologada se violar a ordem pública nacional, regra idêntica encontrada na CNY. O objetivo dessa regra é justamente impedir a irradiação dos efeitos de julgado estrangeiro que possam ameaçar relevantes valores de justiça e de moral no Estado receptor. É equivocada a tese segundo a qual a CNY, por estar incorporada ao direito brasileiro autorizaria a anulação de sentenças arbitrais nacionais por suposta violação, de forma genérica, à ordem pública. Além de constituir mera tentativa de uso artificial do princípio da ordem pública para rever o mérito de decisões arbitrais, tal uso é distorcido, uma vez que, ainda no plano local, a ordem pública é vista a partir de seu primeiro grau, em que são normalmente vedadas as convenções privadas que derroguem valores jurídicos ou morais inderrogáveis pelo ordenamento local15.
A tese baseada no uso do direito comparado, em especial a CNY e a Lei Modelo (a qual, repita-se, serviu de base para a construção da Lei de Arbitragem) para justificar a possibilidade de anulação de sentenças arbitrais por violação à ordem pública é, além de atécnica, injusta do ponto de vista intelectual e científico. É certo que a referida Lei Modelo dispõe em seu art. 36, (1), (b), (ii) que uma das hipóteses é a violação à ordem pública. Mas, conforme bem colocado na "explanatory note" do referido corpo de normas, a ordem pública referida deve ser entendida através do prisma da justiça processual16. Não há espaço na Lei Modelo que se rediscuta o mérito da decisão em razão da violação à ordem pública.
Ainda que se pense numa eventual diferença de tratamento de efeitos de uma sentença no âmbito doméstico e no internacional, nota-se que a opção do legislador foi clara: a ordem pública, vista sob o plano internacional, é a que deve imperar para fins, de reconhecimento e execução de uma sentença arbitral estrangeira no Brasil. Para fins domésticos, a menção à ordem pública como fator de anulação da sentença arbitral não vinga e nada mais é do que o indevido uso do direito comparado como subterfúgio da parte sucumbente na arbitragem para tentativa de reversão do julgado e que deve ser repelida pelo Poder Judiciário.
Em conclusão, o objetivo dessas breves linhas é alertar o leitor, em especial magistrados que se deparam com ações anulatórias de sentenças arbitrais frívolas, quanto ao mau uso do direito comparado no sentido de convencer o julgador sobre o tema da violação à ordem pública para fins de se justificar anulação da sentença arbitral. Trata-se de evidente indução em erro, a qual deve ser combatida com vigor pelos magistrados brasileiros.
Os melhores remédios para que tal frivolidade não ocorra são: ou se litiga na arbitragem com observância às regras do devido processo legal e em respeito à imutabilidade das decisões arbitrais, participando-se ativamente do caso, desde a apresentação do requerimento de arbitragem, passando-se pela composição do tribunal, pela fase postulatória e instrutória com a ampla possibilidade de apresentação de seu caso; ou, simplesmente, não adote a arbitragem (que não é obrigatória) para fins de resolução de conflitos de determinada avença.
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1 Sobre o objetivo do direito comparado, na condição de disciplina autônoma do direito, afirmam Mary Ann Glendon, Michael W. Gordon e Christopher Osakwe: "Comparative law then, as an academic discipline in its own right, is a study of the relationship, above all the historical relationship, between legal systems or between rules of more than one system" (Comparative Legal Traditions. Saint Paul: West Publishing, 1985. p. 7)
2 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4
3 Nesse sentido, a lição de Pierre Legrand: "(...) se o comparatista brasileiro quer compreender uma questão de Direito inglês, ele não pode se contentar em analisá-lo de um ponto de vista positivista. Ele também deve medi-lo a partir do plano cultural (...) Somente uma abordagem culturalista permite fornecer elementos para uma intepretação elucidativa do Direito a fim de se chegar a uma melhor compreensão" (Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018, p. 66-67).
4 Sobre o tema, ver, por todos: PARENTE. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012.
5 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 29 out. 2023.
6 É digno de nota, a esse respeito, o trecho do prefácio da obra de Pierre Legrand, elaborada por Daniel Wunder Hachem: "Nesse sentido, os estudos jurídicos, comparativos não devem ter como escopo unificar ou uniformizar os diferentes ordenamentos a partir da construção forçada, artificial e fictícia de supostas similaridades, mas sim conhecer as especificidades da realidade do outro, perceber o que ele apresenta de diferente em sua cultura jurídica, e valer-se dessa experiencia para refletir criticamente a respeito d "seu "próprio Direito - não com o propósito de realizar "transplantes jurídicos" de um sistema a outro de forma automática, acrítica e descontextualizada, mas com o intuito de criar soluções jurídicas próprias ao Direito nacional, compatíveis com a cultura jurídica na qual ele está inserido, a partir de uma inspiração suscitada por meio da escuta da vivência do outro" (Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018, p. 15).
7 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 67).
8 O respeito à cultura local no momento da comparação jurídica é bem explicada por Pierre Legrand: "Ele [o comparatista] reinsere a singularidade jurídica em sua própria narrativa, na comparação que ele mesmo constrói. Mas pelo menos ele deve, ao longo da sua intervenção, reconhecer e respeitar a singularidade de cada manifestação do Direito, organizando e ao mesmo tempo preservando os vestígios culturais que lá "existem" (Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018, p. 93).
9 A esse respeito, aduz Ricardo Aprigliano: "Mas a este rol podem ser adicionadas outras construções que, não obstante respeitáveis, não representam, sob a perspectiva desta tese, exemplos corretos de verdadeiros princípios jurídicos. A observância da ordem pública ou aos bons costumes, a vedação à revisão do mérito, a autonomia da cláusula compromissória ou mesmo a competência-competência, são exemplos do que se pode denominar de inflação principiológica. Não porque não tenham relevância no estabelecimento de limites e parâmetros ao processo jurisdicional, mas porque a sua compreensão como princípios faz surgir o risco de uma excessiva permissividade para o afastamento de regras concretas, ou para que a partir dessas ideias outros princípios sejam afastados, pelo exercício típico de ponderação que é próprio do conflito entre princípios. Alguns deles, ademais, não possuem o grau de generalidade ou a natureza fundante que caracteriza os princípios. Ao contrário, são regras técnicas concebidas pelo legislador com base em juízos de conveniência, integram decisões políticas dos legisladores e não se traduzem em elementos sobre os quais o sistema jurídico esteja alicerçado" (Fundamentos Processuais da Arbitragem. São Paulo: EDC, 2023, p. 176-177).
10 Carlos Alberto Carmona, a esse respeito, aduz: "Os ordenamentos jurídicos escolhem métodos diferentes de reportar-se à ordem pública, uns mais explícitos, outros menos evidentes. Todos, de qualquer forma, têm a mesma preocupação de evitar que entre em circulação qualquer laudo que ofenda princípios importantes para a organização da vida em sociedade (princípios que, desnecessário dizer, variam no tempo e no espaço e dependem de escolhas políticas e sociais mutantes e variáveis, o que desde lofo já mostra a dificuldade de definir o que seja, afinal de contas, a ordem pública" (Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 426).
11 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 9. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 394.
12 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 424.
13 APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 7.
14 Art. 5º, 2, item "b" da CNY.
15 A esse respeito ver DOLINGER, Jacob. A evolução da ordem pública no direito internacional privado. 1979. Tese (Cátedra) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 40-41.
16 No original: "(b) Grounds for setting aside (.) 46. As a further measure of improvement, the Model Law lists exhaustively the grounds on which an award may be set aside. This list essentially mirrors that contained in article 36 (1), which is taken from article V of the New York Convention. The grounds provided in article 34 (2) are set out in two categories. Grounds which are to be proven by one party are as follows: lack of capacity of the parties to conclude an arbitration agreement; lack of a valid arbitration agreement; lack of notice of appointment of an arbitrator or of the arbitral proceedings or inability of a party to present its case; the award deals with matters not covered by the submission to arbitration; the composition of the arbitral tribunal or the conduct of arbitral proceedings are contrary to the effective agreement of the parties or, failing such agreement, to the Model Law. Grounds that a court may consider of its own initiative are as follows: non-arbitrability of the subject-matter of the dispute or violation of public policy (which is to be understood as serious departures from fundamental notions of procedural justice)". Fonte: UNCITRAL Model Law on International Commercial Arbitration 1985, With amendments as adopted in 2006. Acesso em 28 out. 2023.