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Fato não revelado na arbitragem e produção de provas

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Atualizado às 08:17

Um dos temas mais discutidos nos últimos anos na arbitragem diz respeito do dever de revelação do árbitro. A importância de tal tema é tamanha que deu origem a diversos trabalhos acadêmicos, como artigos, dissertações de mestrado, uma delas publicada recentemente1.

Entre as principais discussões havidas nos últimos anos na área arbitral, a que mais causou controvérsia, foi (e vem sendo) objeto de debates diz respeito ao aumento do escopo do dever de revelação, e as consequências advindas de sua eventual inobservância pelo árbitro no curso de uma arbitragem. Dois são os pontos mais relevantes nessa discussão: o primeiro, se a eventual ausência de revelação de determinado fato no curso de uma arbitragem acarretaria, automaticamente, a anulação da sentença arbitral. O segundo, se o fato não revelado seria capaz de comprometer a isenção do julgador, e por consequência, acarretar a anulação da sentença arbitral.

Tais pontos foram tratados em recente decisão proferida pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP") nos autos da Apelação Cível nº 1116375-63.2020.8.26.01002, cuja ementa parcialmente se transcreve:

"Apelação Ação anulatória de sentença arbitral com pedido de tutela de urgência Sentença que julgou improcedente o pedido inicial Inconformismo da autora Rol do artigo 32 da Lei nº 9.307/96 que é taxativo, de modo que a nulidade da sentença arbitral somente pode ser decretada quando caracterizada alguma das hipóteses nele previstas Pedido de declaração de nulidade de sentença arbitral que está fundamentada na violação do dever de revelação, e, por conseguinte, no desrespeito ao princípio da imparcialidade do árbitro (Lei nº 9.307/96, art. 21, §2º), a permitir, ao menos em tese, o reconhecimento da sustentada nulidade Além de adimplir a obrigação principal de julgar, o árbitro precisa cumprir outros deveres, sobretudo os deveres de independência, de imparcialidade e de revelação, considerados, ainda, os princípios que regem as relações privadas, neles incluídos a autonomia privada, a responsabilidade, a confiança e a boa-fé Confiança depositada na pessoa do árbitro que tem um papel importantíssimo no campo da arbitragem e ela somente pode ser garantida quando a relação estabelecida é transparente e bem esclarecida Dever de revelação que está previsto no artigo 14, §1º da Lei nº 9.307/96 Dever que perdura durante toda a arbitragem, de modo que, caso surja algum fato, durante o procedimento arbitral, que demande revelação, caberá ao árbitro revelá-lo, sob pena de macular a validade do procedimento arbitral Precedente do C. Superior Tribunal de Justiça (caso Abengoa) Ordenamento jurídico que estabelece que "qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" deve ser revelado pelo árbitro, tratando-se, pois, de um comando aberto e amplo, escolhido pelo legislador como tal, o qual deve ser analisado e esclarecido casuisticamente Atuação do advogado da parte e do árbitro na defesa da mesma sociedade em processo de aquisição do controle acionário da Eletropaulo contemporâneo ao procedimento arbitral em questão e ingresso formal, atípico e tardio do advogado da parte na arbitragem Fatos que corroboram a tese autoral no sentido de que o fato não revelado pelo árbitro denota "dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" Atuação do árbitro e do advogado da parte contrária em favor de uma mesma sociedade, em um processo societário de grande relevância, simultaneamente ao procedimento arbitral, gera, aos olhos da parte e de um terceiro razoável, forte desconfiança ou séria dúvida quanto à imparcialidade do árbitro Fato não revelado, de modo que a transparência do procedimento arbitral e a confiança depositada no árbitro restaram maculadas, a configurar a sustentada invalidade do procedimento arbitral, nos termos dos artigos 21, §2º e 32, inciso VIII da Lei nº 9.307/96 Sentença arbitral anulada Sentença recorrida parcialmente reformada Recurso provido em parte".

Trata-se de mais uma ação anulatória de sentença arbitral baseada na ausência de revelação de fato, considerado relevante, pelo TJSP. Como bem resumido pelo voto convergente, apresentado pelo Desembargador Grava Brazil:

"Assim, o conflito ora em exame diz com a interpretação sobre se os fatos alegados pela autora, a saber: (i) a atuação de árbitro L.A.C.R. e do advogado da parte O.Y., em uma bilionária operação societária, e (ii) a atuação simultânea, do árbitro N.E. e do advogado O.Y., em um organismo não estatal, CAF, de auto-regulamentação, deveriam ter sido revelados, no momento em que o advogado O.Y. passou a atuar no caso, em associação com os advogados da parte requerida PNA, e se essa não revelação caracterizaria quebra do dever de revelação e, portanto, fundamento passível de justificar a anulação da sentença arbitral".

O juízo de primeira instância julgou improcedente a demanda anulatória, atingindo, em breve síntese, as seguintes conclusões:

"Com efeito, o próprio autor disse que escritório que lhe patrocinou no procedimento arbitral, "M. F.", também atuou na referida operação societária. No mais, também há indicação de que manteve inúmeras relações com os árbitros nomeados (fls. 1341/1342), sem que isso fosse considerado, pela requerente, fato relevante a ser revelado e passível de causar dúvida sobre a imparcialidade dos árbitros. 

Conclui-se, portanto, que o escritório contratado pelo autor tinha ciência da suposta relação entre Y. e R., pois atuou na mesma operação societária, e não arguiu a suposta nulidade no primeiro momento em que verificada, nos termos do art. 20 da LA, mas apenas após a prolação de sentença arbitral que lhe desfavorável.-] 

Quanto à relação entre E. e Y., tem-se que ambos foram e/ou são membros efetivos do Comitê de Aquisições e Fusões. 

Todavia, a indicação dos membros do referido Comitê é feita pelas entidades que o mantém, quais sejam, Associação Brasileira dos Mercados Financeiros, B3 e IBGC, não sendo possível concluir que a relação entre ambos se trata de afiliação, com fins negociais, tampouco de atuação profissional conjunta.

(...)

Assim, tais circunstâncias não são "atípicas", nem são capazes de ensejar dúvidas sobre a parcialidade dos árbitros"

Ou seja, para os fins dessas linhas, o que mais importa discutir é se a não noticiada atuação de um dos advogados da causa e um dos árbitros componentes do painel arbitral em dita "vultosa"3 operação societária, além do fato de tais pessoas participarem de organismo privado de autorregulamentação, seria capaz de comprometer a isenção de membro do painel arbitral para julgamento da demanda. A resposta dada pelo TJSP foi positiva, concluindo, também, que a partes não possuem o ônus de investigar questões relativas ao árbitro, sendo de responsabilidade deste último noticiar nos autos, em qualquer fase do procedimento, fatos que aos olhos das partes, possam denotar dúvida justificada a sobre a sua independência e imparcialidade.

Diversos são os pontos do respeitável acórdão que merecem comentários. Propõe-se, aqui, analisar e aprofundar apenas um: a qualificação do fato não revelado como suficiente para macular a validade da sentença arbitral.

Conquanto o juízo a quo tenha entendido, com base apenas nas provas documentais encartadas nos autos, que os fatos não revelados não comprometeriam a isenção do julgador, o TJSP, com base no mesmo conjunto probatório, concluiu de forma diversa. Entretanto, um ponto merece reflexão. Será que a prova documental seria o único meio de comprovar que o fato não revelado seria capaz de macular a isenção do julgador e, por conseguinte, causar a invalidade da sentença arbitral? Meros documentos analisados sem o apoio de outras provas, seriam capazes de anular um processo trabalhado com provável esmero, minúcia e responsabilidade por partes bem assessoradas e profissionais julgadores de altíssimo gabarito? Pensa-se que não seria suficiente.

O processo arbitral é conhecido por ser concentrado em etapas e possuir início, meio e fim4. O fim se dá com a prolação da sentença arbitral, a qual não comporta rediscussão, nos termos do art. 18 da Lei de Arbitragem. Por ser um processo concentrado, as partes envolvidas, que escolheram a arbitragem como método de resolução de suas eventuais controvérsias, devem saber escolher estratégica e cuidadosamente os membros do tribunal arbitral, participar de forma ativa e coerente durante o processo, expor o seu caso com a devida minúcia, produzir provas capazes de suportar seus pleitos e cumprir a decisão final que advier. Trata-se de elementos que devem ser cuidadosamente considerados por aquele que, conscientemente, escolhe a arbitragem como método de resolução de seus litígios. O remédio previsto no art. 32 da Lei de Arbitragem é somente aplicável em casos muito atípicos e rigorosamente nas hipóteses taxativas ditadas pela referida disposição.

No caso ora discutido, o juízo de primeira instância valorou a prova documental produzida pelas partes e chegou à conclusão de que o pleito anulatório não prosperava. De forma objetiva aquele juízo, com base nas provas colacionadas aos autos, entendeu que "o escritório contratado pelo autor tinha ciência da suposta relação entre Y. e R., pois atuou na mesma operação societária, e não arguiu a suposta nulidade no primeiro momento em que verificada, nos termos do art. 20 da LA, mas apenas após a prolação de sentença arbitral que lhe desfavorável". Trata-se de decisão tomada de forma segura, com apoio no art. 20 da Lei de Arbitragem - cujo intento é dar segurança jurídica ao processo arbitral -, e principalmente, com base nas provas, em especial juntadas pela parte autora da ação anulatória, a quem pertencia o ônus de provar que o processo arbitral em julgamento estaria eivado de vícios.

O TJSP, ao concluir que que os fatos não revelados pelos árbitros seriam relevantes e de necessária revelação na arbitragem, em face de seu potencial para suscitar dúvida razoável sobre a imparcialidade e independência que se pretende do árbitro, deixou de seguir a sistemática do ônus probatório prevista no Código de Processo Civil ("CPC").  Verificou-se, no caso, simples externalização de um juízo valorativo a respeito do fato não revelado, a qual foi tida como suficiente para reverter a decisão de primeira instância. Deixou o TJSP de considerar todos os elementos que permeiam o caráter concentrado do processo arbitral, e, em benefício da parte sucumbente na arbitragem, ignorando a valoração probatória alcançada pelo juízo a quo.

Entende-se que o TJSP poderia ter se debruçado melhor nos aspectos probatórios a respeito do chamado fato não revelado, para julgamento da demanda. Nada impediria, por exemplo, que, dentro de seus poderes instrutórios, o TJSP, no mínimo, determinasse a conversão do julgamento do feito em diligência5-6, de modo que se colhessem mais provas e contraprovas7 a respeito do dito fato não revelado, como a colheita de depoimento dos próprios membros do tribunal arbitral, e outras pessoas envolvidas. Com isso poderia ter sido alcançada melhor elucidação do fato não revelado e do impacto da não revelação, especialmente diante da afirmação feita de que "se ambos [leia-se, advogado e árbitro] foram contratados para defender os interesses da Enel perante a CVM, não poderiam fazê-lo sem sinergia e sem definirem e comunicarem as respectivas estratégias". Tal ponto, em especial a dita "sinergia" poderia ser mais bem elucidado mediante a tomada de prova oral e de forma eficiente, uma vez que o tribunal ad quem simplesmente determinaria a baixa dos autos ao juízo de primeira instância para a produção da prova8 e julgaria o feito mais bem instruído.  Mas, ao invés de reconstruir os fatos9, o TJSP simplesmente inferiu tal questão, em detrimento da investigação mais aprofundada a respeito do assunto.

Um trabalho de anos realizado não pode ser perdido por uma simples inferência, ainda mais quando cabia ao autor da demanda anulatória o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito, o que não fora feito, conforme a sentença que julgou improcedente a ação anulatória. A metodologia de produção probatória prevista no sistema processual civil brasileiro deve imperar para a elucidação dos fatos. Em especial quando o que se está em jogo é complexo processo arbitral, o qual foi escolhido pelas próprias partes contendentes, as quais provavelmente incorreram em razoáveis dispêndios financeiros com tal demanda. É a característica concentrada do processo arbitral - de início, meio e fim - que não pode ser olvidada pelo julgador. É preciso que se tenha sensibilidade e consciência ao verificar quando a parte sucumbente na arbitragem tenta se valer de todo e qualquer meio para não cumprir eventual decisão que lhe condenou.

__________

1 MARQUES, Ricardo Dalmaso. O Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018.

2 TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível nº 1116375-63.2020.8.26.0100, rel. Des. Maurício Pessoa, j. 1º de agosto de 2023.

3 Assim está dito no voto convergente, de lavra do Desembargador Grava Brazil: "Destaca-se, inicialmente, que todos os fatos mencionados são incontroversos, ou seja, inquestionável que houve a atuação do advogado e do árbitro referidos em vultosa operação societária, bem como que o advogado e o árbitro mencionados integraram importante organismo privado de auto-regulamentação".

4 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 20 ago. 2023.

5 Previsto no art. 938, § 3º do CPC: Reconhecida a necessidade de produção de prova, o relator converterá o julgamento em diligência, que se realizará no tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, decidindo-se o recurso após a conclusão da instrução.

6 No mesmo sentido já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça (ainda que sob a égide do Código de Processo Civil de 1973: "PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ALEGAÇÃO DE ERRO MÉDICO. JUIZ QUE DETERMINA A BAIXA DOS AUTOS PARA REALIZAÇÃO DE NOVAS PROVAS. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO E DA VERDADE REAL. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. O artigo 130 do CPC permite ao julgador, em qualquer fase do processo, ainda que em sede de julgamento da apelação no âmbito do Tribunal local, determinar a realização das provas necessárias à formação do seu convencimento, mesmo existente anterior perícia produzida nos autos. 2.Contudo, não é possível ao Julgador suprir a deficiência probatória da parte, violando o princípio da imparcialidade, mas, por óbvio, diante da dúvida surgida com a prova colhida nos autos, compete-lhe aclarar os pontos obscuros, de modo a formar adequadamente sua convicção. 3. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ, Quarta Turma, REsp Nº º 906.794 - CE, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 07.10.2010.

7 A esse respeito, entende Zulmar Duarte: "Na produção da prova deve ser observado todo o regramento inerente ao meio de prova deferido, principalmente é de ser atendido irrestritamente o contraditório na sua produção, possibilitando inclusive eventual contraprova" (GAJARDONI, Fernando da Fonseca, DELLORE, Luiz, ROQUE, André Vasconcellos e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Forense, 2022, p. 1.367).

8 Ainda, Segundo Zulmar Duarte: "O §3 o art. 938 possibilita que o próprio tribunal, diretamente, ou através de carta de ordem (arts. 236, §2º, e 237), colha o resultado probatório e, posteriormente, aprecie o recurso. De fato, temos aqui uma mitigação ao duplo grau, ne medida em que a prova a ser produzida será diretamente avaliada pelo tribunal" (GAJARDONI, Fernando da Fonseca, DELLORE, Luiz, ROQUE, André Vasconcellos e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Forense, 2022, p. 1.367).

9 A esse respeito, leciona Ricardo de Carvalho Aprigliano: "Em regra, porque os fatos são anteriores ao processo, o que se realiza nos autos é a sua reconstrução. Afinal, o juiz parte de uma "institucionalizada ignorância" acerca dos fatos, razão pela qual o processo precisa ser dotado dos adequados meios para permitir a ele o conhecimento e a demonstração dos fatos relevantes para o julgamento (...)". (APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Comentários ao Código de Processo Civil. Das Provas: disposições gerais - V. VIII, T. I. (coord. GOUVÊA, José Roberto F., BONDIOLI, Luiz Guilherme A., e FONSECA, João Francisco N. da Fonseca). São Paulo: Saraiva, 2020, p. 30).