Perícia na arbitragem: o papel do assistente técnico
terça-feira, 28 de março de 2023
Atualizado às 08:49
Um tema que tem sido objeto de debates recentes na comunidade arbitral diz respeito à produção da prova técnica na arbitragem. Apesar de não constituir tema novo, os debates permanecem acalorados, notadamente quando é necessário demonstrar qual o verdadeiro papel do assistente técnico na realização de uma prova pericial.
No âmbito do procedimento arbitral, os assistentes técnicos são chamados a atuar quando o juízo nomeia um perito. É nesse contexto que, para colaborar com a realização da prova técnica, as partes podem se valer de assistentes técnicos, os quais, por força legal, são de confiança da parte que os indica e não estão sujeitos a impedimento ou suspeição1.
Não havendo regra específica sobre o assunto na Lei de Arbitragem ou nos regulamentos de arbitragem mais utilizados no Brasil, cabe ao tribunal arbitral organizar a metodologia pericial a ser aplicada ao caso, e, na hipótese de realização de perícia, facultar às partes a indicação de assistente técnico para acompanhamento dos trabalhos periciais. Nesse ponto, nada impede que os árbitros se valham dos princípios estabelecidos pelo direito processual brasileiro, que regulamenta a matéria nos arts. 464 a 480 do Código de Processo Civil ("CPC"), incluindo, o escopo de atuação do assistente técnico.
A literatura nacional a respeito das funções do assistente técnico em arbitragens é escassa2. Entre os poucos estudos realizados, destaca-se, primeiramente, o de Ivam Ricardo Peleias. Em princípio, a doutrina especializada entende que a figura do assistente técnico se assimila ao de um consultor técnico, relatando que: "Constata-se nos processos judiciais e nas arbitragens a evolução do trabalho do assistente técnico. Este, antes, limitava-se a emitir parecer técnico após a entrega do laudo pelo perito. Com o passar do tempo e a tomada de consciência de que o resultado da perícia pode determinar o rumo dos processos, o assistente técnico passou a atuar como consultor técnico, subsidiando seu contratante com os elementos necessários à tomada de decisões e providências nas várias fases das demandas"3.
Seja na condição de assistente ou de consultor técnico, a figura ora discutida se refere aos profissionais nomeados pelas partes para que, em uma arbitragem, auxiliem o perito do tribunal arbitral, mediante a apresentação de laudos críticos. O termo "advocacia técnica"4, não parece adequado para conceituar o trabalho do assistente técnico, cuja função não é a de postulação do direito da parte que o indica, mas tão somente de apresentar uma opinião técnica sob a ótica da tese jurídica desenvolvida. Os assistentes técnicos não opinam sobre questões jurídicas. Atestam o que creem, sob o ponto de vista técnico e estão sujeitos a normas de ordem ética5, as quais estabelecem que este não pode comprometer a sua independência intelectual6. À vista disso, percebe-se que sua função nada difere da do perito. O escopo do trabalho técnico é rigorosamente o mesmo7.
Com efeito, a prova técnica realizada no âmbito de uma arbitragem, com a participação de perito do tribunal arbitral e dos assistentes técnicos das partes é materializada por meio de laudo pericial, que nada mais é do que o resultado de diligências que foram acompanhadas pelos assistentes técnicos das partes, que posteriormente apresentaram seus respectivos pareceres técnicos. Independentemente do tipo de prova técnica a ser produzida na arbitragem, a metodologia aqui discutida leva em conta o princípio processual da cooperação8 (que, ao fim e ao cabo, visa justamente a completude do material probatório9). Desse modo, garante-se que seja plenamente possível às partes questionarem determinado critério técnico adotado pelo perito, permitindo que estas apresentem e justifiquem a aplicação de critério distinto que eventualmente entendam ser mais apropriado, à luz da colaboração que se espera das partes e seus assistentes técnicos.
Nada obstante, o fato de a parte possuir o direito de indicar assistente técnico que seja de sua confiança e que se alinhe à tese por ela defendida, não implica afirmar, automaticamente, que o julgador não possa se convencer das críticas elaboradas por estes assistentes técnicos ao laudo pericial. Com efeito, no processo decisório, os árbitros não estão subordinados às exatas conclusões do laudo pericial, podendo, em sua sentença, levar em consideração os pareceres técnicos (ou laudos críticos) apresentados pelos assistentes técnicos das partes. Isso porque, conquanto a perícia deva ser considerada essencialmente como braço extensivo do tribunal arbitral, isso em nada significa que suas conclusões técnicas devam ser obrigatoriamente adotadas.
O julgador, com toda certeza, deve se ater em primeiro lugar ao laudo produzido pelo perito de sua confiança, mas é preciso ouvir o que as partes e seus assistentes técnicos têm a dizer acerca do laudo pericial elaborado pelo perito de confiança do juízo. A esse respeito, cita-se trecho de recente julgado em que o Superior Tribunal de Justiça ("STJ")10 deixou clara essa possibilidade:
"Cediço que conquanto tenha o juiz, como destinatário da prova, a competência para nomear perito quando acredite necessária a realização de prova pericial a fim de elucidar os fatos, deve ser zeloso na busca pela verdade real, indicando profissional de sua confiança e que possua conhecimento técnico ou científico suficiente para realizar o referido exame (...) Para contradizer laudo pericial elaborado por perito de confiança do juízo, a parte ré deveria trazer aos autos elementos de convicção suficientes a levantar dúvida razoável sobre o trabalho feito, o que não ocorreu no presente caso (...)".
A figura do assistente técnico é vista com a seriedade e importância que tais profissionais ostentam, tal qual previu o próprio CPC quando tratou das perícias complexas. No diploma legal, o legislador inclusive dispõe acerca da possibilidade da indicação de mais de um perito, assim como de a parte indicar mais de um assistente técnico11. O objetivo é evidente: a busca da verdade por meio da contribuição e cooperação.
O que se pretende extrair dessas breves linhas, é que o julgador, mais especificamente o árbitro, não deve estar obrigatoriamente subordinado ao trabalho apresentado pelo perito do tribunal arbitral. Os trabalhos técnicos desenvolvidos em uma arbitragem devem ser todos sopesados com a devida minúcia pelos árbitros, cabendo a estes a valoração que lhes parecer correta. Mário Guimarães, nesse sentido, já dizia: "Quanto a outras provas - provas indiciais, exames periciais, etc, o seu valor depende muito das condições em que se realizem. Os peritos são testemunhas técnicas. Mas o juiz não ficará nunca adstrito à opinião deles"12.
Rejeita-se, a partir dessa premissa, qualquer tipo de delegação dos árbitros ao perito. Este último, apesar de funcionar como auxiliar da justiça, não possui poder jurisdicional. A decisão de direito, seja acolhendo em parte ou mesmo rejeitando os exames periciais e, ao revés, acolhendo teses apresentadas por algum dos assistentes técnicos das partes, pertence unicamente ao julgador13.
__________
1 Nesse sentido é a disposição do art. 466, § 1º do Código de Processo Civil.
2 Entre as poucas obras sobre o assunto, pode-se enumerar: MAIA NETO, Francisco e FIGUEIREDO Flavio Fernando de (coord.). Perícias em Arbitragens. São Paulo: Leud, 2019; PELEIAS, Ivam Ricardo. O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168; GONÇALVES, Eduardo Damião; BITTENCOURT, Rafael. A perícia na arbitragem. A produção de provas técnicas no âmbito do procedimento arbitral e novas tendencias, Revista do Advogado, São Paulo a. 33, n. 119, abr 2013, p. 35-41; MASTROBUONO, Cristina M. Wagner. Pesquisa: Regras de Imparcialidade e Independência na Produção de Provas em Arbitragens in Revista Brasileira de Arbitragem n. 67, jul./set. 2020, p. 32-77.
3 Neste sentido, Ivam Ricardo menciona os ensinamentos de Martinho Ornelas: "A função de consultor técnico do cliente já foi abordada. Ao apresentar a obra de Ornelas, Pinheiro Neto asseverou que o assistente técnico é o advogado técnico da parte, o perito particular, de confiança do advogado da causa. Dentro do possível, tal qual o advogado, deve defender os interesses do cliente, nos limites de sua qualificação profissional e da ética". (PELEIAS, Ivam Ricardo. O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168).
4 Citado no estudo de Ivam Ricardo Peleias (O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168).
5 A esse respeito, vide o disposto no art. 22, item "d" da Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TP 01, que dispõe sobre perícia contábil: "os assistentes técnicos têm o dever inalienável de colaborar para a revelação da verdade e comportar-se de acordo com a boa-fé e com a equidade, além de cooperar entre si e com o perito nomeado, para que se obtenha um resultado da perícia em tempo razoável".
6 Ao menos em matéria de perícia contábil, dispõe o art. 2.3.1 das Normas Brasileiras de Contabilidade P2 (Normas Profissionais do Perito Contábil): "O perito-contador e o perito-contador assistente devem evitar e denunciar qualquer interferência que possam constrangê-los em seu trabalho, não admitindo, em nenhuma hipótese, subordinar sua apreciação a qualquer fato, pessoa, situação ou efeito que possam comprometer sua independência".
7 O estudo de Ivam Ricardo Peleias cita, nesse sentido, clássica lição de Moacyr Amaral Santos, que reconhece a semelhança de funções ao afirmar que "os assistentes técnicos não são senão peritos indicados pelas partes, porquanto exercem funções semelhantes às dos peritos. A distinção entre o perito e o assistente técnico está na nomenclatura e emerge do sujeito processual que o nomeia". (PELEIAS, Ivam Ricardo. O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168).
8 Conforme disposto no art. 6º do CPC: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". A respeito desse dispositivo, anota José Rogério Cruz e Tucci: "Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado "dever de cooperação recíproca em prol da efetividade", o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal." (Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 13.).
9 Vale anotar ainda que a cooperação frisada também se dá sem sentido material, enquadrando, nesse ponto, a completude do material probatório colhido nos autos. Nesse sentido dispõe o art. 378 do CPC: "Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. A respeito desse dispositivo, anota Vítor de Paula Ramos: "Repetindo o texto do CPC/1973, mas conferindo mais ferramentas para a busca da verdade (como será demonstrado na anotação ao art. 380), traça o legislador brasileiro claramente a relação teleológica entre prova e verdade (vide comentário ao início do capítulo) e a necessidade, para tanto, de que o material probatório seja o mais completo possível (vide comentário aos arts. 370 e ss.). Para a busca da necessária completude tendencial do material probatório, faz-se mister que nenhum sujeito do processo (salvo casos excepcionais) tenha um "direito" de esconder provas. Afinal, "ninguém" significa nenhuma pessoa, não podendo ser interpretado como "alguém", "alguma pessoa". Daí a importância do quanto é dito sobre o tema na anotação ao art. 379." Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 633.
10 STJ, Segunda Turma, REsp 1.694.645/MG, rel. Min. Herman Benjamin, j. 28.11.2017.
11 Nesse sentido, o art. 475 do CPC: Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito, e a parte, indicar mais de um assistente técnico. Referida disposição recebeu pertinentes comentários em obra coordenada por Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer: "Em diversas ocasiões a prova pericial demanda conhecimentos específicos em mais de uma área. É como no caso de uma perícia realizada em ação que discute a logística reversa de resíduos sólidos. Tende a ser preciso, nesta hipótese, que se nomeie um engenheiro ambiental e também um engenheiro de produção, o que se apresenta absolutamente desejável. No mesmo passo, em ação que se discuta a incapacidade absoluta para o trabalho em razão de acidente de veículo, bem como a profunda depressão que acomete o autor, poderá ser necessária a nomeação de um médico do trabalho e de um psiquiatra. Para cada perito que se afigura imprescindível ao deslinde de questões técnicas, haverá a possibilidade de indicação de um assistente técnico". (Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1319-1320).
12 GUIMARÃES, Mário, O Juiz e a Função Jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 310.
13 Nesse sentido, a opinião de Daniel Amorim Assumpção Neves, ao comentar o dispositivo constante do art. 473, § 2º do CPC ("É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia"), cuja base principiológica aplica-se perfeitamente à arbitragem: "Note-se que o dispositivo não proíbe em absoluto a emissão de opiniões pessoais do perito, até porque na maioria das perícias é justamente isso o que se busca. O que não cabe ao perito fazer - e, infelizmente, muitos o fazem - é emitir opiniões pessoais que excedem o exame técnico ou científico a que foi chamado a realizar. E ainda pior quando o perito imagina ser o juiz da causa e passa a emitir opiniões jurídicas sobre os fatos analisados, extrapolando sua função no processo. Nunca é demais lembrar que o perito é um expert em determinada área de conhecimento que auxilia o juiz no esclarecimento dos fatos, ou seja, na parte jurídica não cabe a interferência do perito. Afinal, iura novit curia, ou seja, o juiz sabe o Direito (ou ao menos deveria sabê-lo)". (Novo Código de Processo Civil - Lei 13.105/2015. São Paulo: Ed. Método, 2015, p. 276).