O tempo processual na arbitragem: equilíbrio entre a desnecessidade de rigidez processual e imposição de segurança jurídica
terça-feira, 29 de novembro de 2022
Atualizado às 08:39
Pretende-se, nessas breves linhas, tecer algumas reflexões a respeito da natureza dos prazos fixados no âmbito da arbitragem. Conforme já se pontuou em anterior escrito1, o processo arbitral não comporta o excesso de rigor, típico das lides estatais, sob pena de se esvaziar completamente as atenções sobre o mérito, que, ao fim e ao cabo, é o que verdadeiramente importa na arbitragem. Nesse sentido, diante do nítido caráter flexível da arbitragem, não há espaço para discussões a respeito da ocorrência de preclusão, seja temporal, consumativa ou lógica no âmbito da arbitragem2, preservado, por evidente, o necessário formalismo, o qual, nas lúcidas palavras de Flávio Luiz Yarshell, é "imprescindível, como penhor de legalidade"3.
Com efeito, o legislador não revelou (com razão) qualquer preocupação em fixar regras concernentes a aspectos que levassem em conta o fator tempo durante a fase arbitral. Até mesmo os prazos para prolação da sentença arbitral e a decisão acerca dos pedidos de esclarecimentos face à sentença são passíveis de modificação pelas partes4.
Talvez, essa despreocupação do legislador em fixar regras mais específicas a respeito de questões temporais na arbitragem tenha se dado justamente em razão do caráter flexível da arbitragem, tornando-o um processo "tailor-made"5.
No âmbito do processo arbitral, geralmente, partes e árbitros trabalham sob a base de prazos prefixados. O processo arbitral, fundado em regras predeterminadas, se justifica pela própria autonomia das partes em uma arbitragem. Tendo sido as partes que optaram pela arbitragem, caberá a elas, portanto, a regência do procedimento6, inclusive a fixação dos limites temporais, no âmbito de sua plena autonomia.
Quando as partes firmam, diante do tribunal arbitral, o "Termo de Arbitragem", ou, nos termos da nomenclatura da arbitragem CCI a chamada "Ata de Missão", está-se estabelecendo ali o calendário do processo: são fixados os prazos de alegações iniciais, respostas, réplicas, tréplicas, especificações de provas, dentre outros, que o tribunal e as partes reputarem necessários e, é claro, o prazo para a prolação da sentença.
Ademais, cumpre lembrar que os prazos fixados no Termo de Arbitragem, comumente chamados no direito francês de délai d'arbitrage, não são preclusivos. O délai d'arbitrage engloba o prazo de duração da instância arbitral fixado pelas partes e, se por elas autorizado ou se o regulamento de arbitragem aplicável previr, poderá haver a prorrogação do prazo7. Trata-se de prazo de natureza puramente processual e prefixado pelas partes diante dos árbitros8, o que afasta o estado de incerteza no desenvolvimento do processo arbitral.
Quando muito, o que é possível e constitui prática comum nas arbitragens é a criação de regras de caráter preclusivo, de modo a garantir um mínimo de segurança jurídicas às partes e ao próprio processo arbitral, evitando-se rediscussão de matérias já vencidas pelo decurso do tempo. Nesse sentido, é normal que uma regra com a seguinte redação conste dos Termos de Arbitragem:
Caso uma parte tenha conhecimento de que alguma disposição ou exigência das normas procedimentais aplicáveis não foi cumprida pela parte contrária, mas, mesmo assim, continue a atuar no procedimento sem manifestar a sua objeção a esse descumprimento em até 15 (quinze) dias, contados da ciência do evento, considerar-se-á que essa parte renunciou ao direito de formular qualquer oposição àquela falta.
Tal tipo de disposição nada mais é que um mecanismo por meio do qual as partes são exortadas a envidar sempre os seus melhores esforços no sentido de não criar óbices evitáveis e indevidos ao bom andamento do processo arbitral, cooperando com sua administração e portando-se com lealdade em relação à sua contraparte, em nome do dever de estrita observância aos princípios da boa-fé, cooperação e lealdade processual9.
Tal tipo de providência, aliada à liberdade das partes, possibilita o desenvolvimento do processo arbitral de forma predefinida. Em complemento, o controle exercido pelos árbitros10 garante que o processo tenha sua fluência com a segurança11 esperada, restando desnecessário ou até mesmo descabido que discussões a respeito da ocorrência de preclusão de direitos ocorram no âmbito da arbitragem.
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1 Ver, nesse sentido: Os prazos da arbitragem e o rigorismo excessivo - Migalhas. Acesso em 20 nov. 2022.
2 Como bem afirma José Carlos de Magalhães, "na arbitragem, a regra é a decisão sempre se fundar na prova e não nos efeitos legais decorrentes da revelia e da preclusão". (Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 58).
3 Segundo o referido autor: "Com efeito, quem escolhe a arbitragem tendencialmente busca uma justiça feita sob medida, isto é, mediante um processo ajustado às peculiaridades da controvérsia, fruto de uma gestão por julgadores com disponibilidade e preparo adequados às necessidades do caso. Não se trata - preservada opinião contrária - de fugir do formalismo estatal (uma dose de formalismo é imprescindível como penhor de legalidade), mas de evitar as mazelas que o Poder Judiciário eventualmente apresente, decorrentes em parte de sua estrutura (ou da falta dela) em parte de sua massificação (haja ou não, de verdade, um grande volume de processos), da qual possam resultar processamento e julgamento não adequadamente sintonizados com as peculiaridades do caso concreto" (YARSHELL, Flávio Luiz. Processo arbitral coletivo: breve reflexão sob a ótica da segurança e da confiança. In: Arbitragem societária coletiva. MONTEIRO, André Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; BENEDUZI, Renato (Coords.). São Paulo: Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2021, p. 174).
4 "Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro"; e art. 30, parágrafo único: "O árbitro ou o tribunal arbitral decidirá no prazo de 10 (dez) dias ou em prazo acordado com as partes, aditará a sentença arbitral e notificará as partes na forma do art. 29".
5 Nesse sentido, v. Karl-Heinz Böckstiegel: "There are many ways of managing case efficiently, and it is one of the advantages of arbitration over court litigation that arbitral tribunals can shape a tailor made procedure that takes into account the many particularizes of each case [.] Although it is important to clarify the rules of the game as early as possible, it is also important to leave room for flexibility later in the proceedings [.]" (Presenting evidence in international arbitration. ICSID Review: Foreign Investment Law Journal, Washington, v. 16, nº 1, p. 1-9, 2001).
6 Não é somente a Lei Brasileira de Arbitragem que consigna a liberdade das partes em fixar as regras do processo arbitral, conforme o disposto no art. 2º e seus parágrafos. A Lei Suíça de Direito Internacional Privado (LDIP), por exemplo, prevê em seu art. 182 (1) que as partes podem, diretamente, ou referindo-se a um regulamento de arbitragem, regulamentar o processo arbitral; elas podem também submeter o procedimento à lei processual de sua livre escolha ("Les parties peuvent, directement ou par réference à un réglement d'arbitrage, régler la procédure arbitrale; elles peuvent aussi, soumettre celle-ci à la loi de procédure de leur choix"). Da mesma forma, cita-se a Lei Sueca de Arbitragem (Swedish Arbitration Act) que, em seu art. 21, dispõe que o tribunal arbitral deverá tratar o litígio de maneira imparcial, apropriada e rápida, além de se conformar com as regras que tiverem sido acordadas entre as partes, em termos procedimentais ("The arbitrators shall handle the dispute in an impartial, practical, and speedy manner. They shall thereupon act in accordance with the decisions of the parties insofar as there is no impediment to so doing"). E, por fim, cita-se o Código de Processo Civil Francês ("CPC francês"), que, no art. 1.509, dispõe que, na ausência de regras estipuladas pelas partes, cabe ao árbitro determinar o procedimento a ser adotado (segunda parte do art. 1.509 do CPC francês: "Dans le silence de la convention, l'arbitre règle la procédure, autant qu'il est besoin, soit directement, soit par référence à un règlement d'arbitrage ou à des règles de procédure").
7 Trata-se de questão admitida, por exemplo, pela jurisprudência francesa. Vide nesse sentido os seguintes julgados: Corte de Cassação Francesa (1ª Ch. Civ), j. 15.06.1994 (caso "Sonidep"), com nota de Emmanuel Gaillard, Revue de l'Arbitrage, nº 1, Paris: Comité Français de l'Arbitrage, p. 88-101, 1995; Corte de Apelações de Lyon (1ª Ch.), j. 1º.07.1993 (caso "Finapar"), com nota de Philippe Fouchard, Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité Français de l'Arbitrage, nº 1, p. 102-106, 1995. Em relação a jurisprudência brasileira destaca-se a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no caso Peyrani Brasil S.A. contra SMS Demag Ltda.: Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de instrumento nº 1.0024.06.206390-4/001, Rel. Des. Maurílio Gabriel, 15ª Câmara Cível, j. 16.11.2006, DJ 23.01.2007.
8 A força do délai d'arbitrage é capaz até mesmo de barrar pedidos de "perempção de instância", como ocorreu no caso CCI nº 2.730, de 1982. Nesse caso, a parte requerida havia suscitado que a falta de uma providência burocrática teria o condão de gerar a "perempção da instância arbitral", o que foi rejeitado pelos árbitros em virtude do art. 18 do Regulamento de Arbitragem da CCI de 1998 (atual art. 23, Regulamento de 2021) ao qual as partes estavam atreladas. Nos termos do comentário dessa decisão, em arbitragens CCI inexistiria eventual perempção de instância arbitral, pois a própria corte de arbitragem pode prorrogar o prazo do procedimento, se ele reputar necessário. Nesse sentido, v. JARVIN, Sigvard; DERAINS, Yves. Collection of ICC Arbitral Awards (1974-1985). The Netherlands: Kluwer Law, 1994. p. 539-542, nota de Yves Derains.
9 Nesse sentido, anota José Rogério Cruz e Tucci: "Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado 'dever de cooperação recíproca em prol da efetividade', o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal." (Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 13).
10 CLAY, Thomas. L'Arbitre. Paris: Dalloz, 2001.
11 Segundo Flávio Luiz Yarshell: "Tudo isso se traduz em segurança: as partes tendem a participar efetivamente do processo e, portanto, concorrem, no limite de sua parcialidade, para o resultado". (YARSHELL, Flávio Luiz. Processo arbitral coletivo: breve reflexão sob a ótica da segurança e da confiança. In: Arbitragem societária coletiva. MONTEIRO, André Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; BENEDUZI, Renato (Coords.). São Paulo: Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2021, p. 174).