O PL antiarbitragem e os prejuízos para o agronegócio
terça-feira, 30 de agosto de 2022
Atualizado às 07:33
Muito tem-se discutido sobre os malefícios advindos do PL 3.293/21 de autoria da Exma. Sra. deputada Federal Margarete Coelho, que tem sido cunhado pela doutrina especializada como "PL antiarbitragem".
Conforme já se discorreu em escritos anteriores, o aludido projeto tem como principal premissa "disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do procedimento arbitral e a publicidade das ações anulatórias, além de dar outras providências". Apesar disso, quando bem analisado, o PL antiarbitragem, como o próprio nome diz, inviabiliza o uso da arbitragem no Brasil. O fato é que, tal inviabilização gera efeitos diretos no mercado, uma vez que diversos de seus setores utilizam a arbitragem como principal mecanismo de resolução de controvérsias. Um deles, é o agronegócio, objeto dessas breves linhas.
Dados públicos demonstram um crescimento exponencial do agronegócio nas últimas décadas, colocando o Brasil entre os países com o maior crescimento da produtividade agrícola no mundo. A partir da análise dos dados censitários no período compreendido entre 1970 e 2006, concluiu-se que a taxa média anual da produtividade total dos fatores foi de 3,5%, valor considerado elevado quando comparado a taxa média mundial, que tem sido de 1,84% ao ano1.
O otimismo dos setores políticos e empresariais quanto ao crescimento do agronegócio justifica-se não somente pelos indicadores econômicos citados - que colocam o agronegócio como o principal setor da economia nacional -, como também pelo seu potencial para crescimento em um cenário futuro. O Brasil conta com abundantes recursos hídricos, possui clima favorável ao plantio e cultivo, e seu vasto território ostenta proporções continentais. Estima-se que o país possua 22% das terras agricultáveis do mundo2 ou, segundo dados recentes, tenha crescido 44,8%, chegando a 664.784 km² em 2018, o equivalente a 7,6% do território nacional, considerando a parte terrestre e marítima do país3.
Como consequência direta do desenvolvimento do agronegócio, nas últimas décadas o crescimento do setor foi acompanhado da sofisticação das relações comerciais a ele inerentes, uma vez que sua cadeia produtiva engloba uma gama complexa e variada de atividades comerciais. Obrigatoriamente, o sistema do agronegócio incorpora, além da agropecuária propriamente dita, a produção e comercialização de insumos, a indústria de transformação e processamento, e a rede de distribuição da produção. Complementando a cadeia, encontram-se os serviços de apoio, pesquisa e assistência técnica, além do transporte e logística, comercialização, concessão de crédito, exportação e importação (atividade desenvolvida pelas empresas multinacionais denominadas tradings), serviços portuários, distribuidores (dealers), bolsas e o consumidor final4.
É natural que no âmbito de um cenário comercial competitivo surjam divergências, algumas de alta complexidade jurídica. No caso do agronegócio, as demandas podem envolver não somente pequenos produtores rurais e comerciantes locais, como grandes latifundiários, multinacionais e conglomerados industriais de grande envergadura, atraindo as atenções do mercado e dos principais agentes do setor. A via tradicionalmente utilizada para a resolução de tais conflitos ainda é, na grande maioria dos casos, o processo estatal.
No entanto, a cadeia produtiva do agronegócio, com sua complexa rede de relações negociais, pode dar origem a demandas cuja resolução mais adequada pode ultrapassar a capacidade do sistema judiciário de solucioná-las no tempo e modo satisfatórios, e que dependam de maior minúcia e expertise que apenas aqueles totalmente envolvidos na cadeia agronegocial possam proporcionar.
Nesse sentido, a arbitragem tem surgido como remédio promissor no campo de resolução de disputas no setor do agronegócio. Nessa seara, uma série de matérias tem sido adequadamente resolvidas por arbitragem: disputas nos contratos de compra e venda de commodities agrícolas (em especial soja e cana-de-açúcar); disputas no âmbito de contratos agrários de parceria e arrendamento; disputas no âmbito de contratos de financiamento rural e compra e venda de insumos (sementes, defensivos agrícolas); disputas no âmbito de contratos de fornecimento e de integração vertical; disputas no âmbito de contratos imobiliários de compra e venda de imóveis; disputas no âmbito de relações societárias decorrentes de estatutos, contratos socais, acordos de acionistas, joint ventures, entre outros.
O uso da arbitragem passou, inclusive, a ser ainda mais debatido no campo do agronegócio quando da promulgação da lei 13.986/2020 ("Nova Lei do Agro"), a qual promoveu importantes comandos normativos com o intuito de fomentar o agronegócio nacional, possibilitando, por exemplo, que títulos recebíveis do agronegócio possam ser atrelados à moeda estrangeira, atraindo o ingresso de capital estrangeiro no Brasil em prol do agronegócio. Nesses casos, o investidor estrangeiro exige que a cláusula de resolução de disputas se dê por arbitragem, o que constitui, na maioria das vezes, condição essencial para a realização do negócio.
O incremento das disputas (como as acima exemplificadas) no setor agroindustrial incentivou até mesmo entidades centenárias, como a Sociedade Rural Brasileira a desenvolver projeto na área de resolução extrajudicial de disputas, criando a sua própria câmara de arbitragem5.
Consolidado o uso da arbitragem para a resolução de disputas no setor agroindustrial, sobreveio o PL antiarbitragem, que se aprovado, não só representará o fim da prática da arbitragem no Brasil, mas, por via reflexa, gerará severos prejuízos ao agronegócio nacional e, consequentemente, à economia brasileira. Alguns pontos do PL antiarbitragem que causam efeito perverso no mercado agroindustrial, podem ser abaixo elencados:
a) O PL antiarbitragem impõe restrições à liberdade das Partes incompatíveis com o modelo jurídico no qual a arbitragem se funda, tanto no direito brasileiro, como no cenário internacional;
b) O PL antiarbitragem gera insegurança jurídica ao ambiente de negócios, aumento de custos de transação, aumento do risco de crescimento de demandas judiciais, menor concorrência e aumento de custos à sociedade, afastando ou reduzindo os investimentos no país, o que no mercado agroindustrial gera imediato impacto, dados os investimentos estrangeiros fomentados, em especial, pela Nova Lei do Agro;
c) Quanto aos árbitros, o PL antiarbitragem propõe modificação para impor-lhes dever de revelar fatos que denotem "dúvida mínima" sobre sua imparcialidade e independência, substituindo o atual critério da "dúvida justificada". Assim, o Brasil passaria a adotar critério isolado, diferente de todos os demais países, muitos dos quais com secular convívio arbitral, dos tratados, de guias e diretrizes internacionais. Dúvida justificável, no sistema da Lei de Arbitragem de hoje, é um conceito juridicamente objetivo, cuja aplicação contribui para segurança jurídica da arbitragem no Brasil. "Dúvida mínima", ao contrário, não é. Sendo esse o critério do legislador, todo e qualquer elemento poderá ser utilizado para tentar, após a decisão de mérito, anular procedimentos arbitrais a pretexto de violação a deveres de revelação. A instabilidade será enorme, o que certamente gerará impactos negativos na cadeia produtiva agroindustrial, que perderá estabilidade em razão de uma brecha para um possível sem-número de ações judiciais que tenham por objeto anular sentenças arbitrais sob o manto da aludida "dúvida mínima";
d) O PL antiarbitragem limita a quantidade de processos em que um mesmo profissional pode atuar, o que representa intromissão indevida do Estado na atividade profissional e impõe um cerceamento inconstitucional à livre iniciativa. Ademais, esse controle já é realizado pelos usuários que livremente optam pela arbitragem, sendo desnecessário impor limites por via legal. Importante ressaltar que o cerceamento legislativo da quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar não resultará em procedimentos mais céleres, mas cerceará a escolha dos usuários quanto aos profissionais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, muito especializadas, para as quais o mercado necessita de profissionais capacitados tanto na matéria objeto da disputa quanto na condução de arbitragens. O mercado agroindustrial, que conta com um número restrito de especialistas em resolução de disputas, será diretamente afetado caso o PL seja aprovado;
e) O PL antiarbitragem regula, no plano legal, deveres de publicação de certas informações dos processos arbitrais, tais como a composição do Tribunal Arbitral, o valor da disputa ou mesmo a íntegra das decisões. Todavia, essa medida é inadequada, uma vez que essas matérias são universalmente deixadas ao autorregramento do próprio setor, permitindo que se adote, em cada caso, a solução mais apropriada para aquela disputa em particular. A revelação indiscriminada dessas informações suscita o risco de ensejar intimidação, manobras de procrastinação ou pressão sobre partes e árbitros, sem que se vislumbrem vantagens que decorreriam de um modelo legal que impõe, a priori, a divulgação de informações sensíveis e que, como regra, os agentes de mercado optam por manter em caráter reservado. A violação da confidencialidade possui um custo relevante para os agentes econômicos, em especial no agronegócio. Em outras palavras, desenvolver negócios em um país que não permite a solução de conflitos legais confidencialmente é mais arriscado e mais caro. O resultado tenderá a afugentar os melhores profissionais, reduzir a escolha da arbitragem como método adequado de solução de disputas, gerando efeitos adversos nos negócios travados no ambiente agronegocial.
As sugestões propostas pelo PL antiarbitragem, se implementadas, no melhor cenário, terão como resultado imediato (i) a queda de investimentos estrangeiros, em razão da perda da arbitragem como método de resolução alternativo de disputas ou, num cenário mais favorável (mas ainda ruim para o agronegócio) a (ii) redução de casos, a migração das arbitragens brasileiras para outros países e a eliminação do país como possível sede de arbitragens internacionais, elemento que não interessa aos players do agronegócio, que, em sua grande maioria, querem ver suas demandas resolvidas em ambiente interno e privativo, isto é, sem exposições.
De uma forma geral, o PL antiarbitragem, caso aprovado, causará severos prejuízos à economia brasileira, em especial, ao agronegócio, conhecido por sua necessidade de se manter estável e, sem sombra de dúvidas, o setor mais importante da economia brasileira.
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1 Tal cálculo se dá a partir da apuração da quantidade de insumos e produtos, de forma a apurar o aumento da quantidade de produto que não é explicada pelo aumento da quantidade de insumos. FUGLIE, K., WANG, S.L., BALL, V.E. (coord.). "Productivity growth in agriculture: An international perspective". In: European Review of Agricultural Economics, v. 40, 3, p. 531-534, jul. 2013; e GASQUES, José Garcia, "Sources of growth in Brazilian agriculture: Total Factor Productivity". In: EuroChoices v. 16, 1, p. 24-25, 2017.
2 RODRIGUES, Roberto. "O céu é o limite para o agronegócio brasileiro". In: Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro, v. 60, 11, p.14-15, nov. 2006.
3 Fonte: Área agrícola cresce em dois anos e ocupa 7,6% do território nacional | Agência de Notícias (ibge.gov.br). Acesso em 28 ago. 2022.
4 CONTINI, Elísio; GASQUES, José Garcia; LEONARDI, Renato Barros de Aguiar; BASTOS, Eliana Teles. "Evolução recente e tendências do agronegócio", Revista de Política Agrícola, Ano XV, n. 1, p. 5-28, jan./mar. 2006.
5 Fundada em 1919, a SRB atua como agente negociador político, gerador de conteúdo e serviços para toda a cadeia produtiva do agronegócio. A entidade defende a cadeia produtiva rural eficiente, competitiva e sustentável e tem como bandeiras fundamentais o respeito ao direito de propriedade, a segurança jurídica, a sustentabilidade, a eficiência e a desburocratização. Como parte desses projetos, um centro de mediação e arbitragem foi criado no âmbito da SRB ("CARB"), que, recentemente, foi incorporado a prestigiada Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil ("Camarb"), um dos mais importantes centros arbitrais brasileiros. Para informações, ver: Arbitragem - SRB. Acesso em 20 ago. 2022.