Árbitros e arbitragens Parte III: a Nota Técnica do CIArb Brazil acerca do PL 3.293/21
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
Atualizado às 10:06
No escrito publicado nesta Coluna na edição de 26 de outubro de 20211, discorreu-se, de forma geral, sobre os malefícios decorrentes do projeto de lei 3.293/212 ("PL"), que tem por escopo a alteração da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") para, dentre outras provisões, disciplinar o exercício da função de árbitro. Uma das mudanças propostas está na criação do limite de dez procedimentos arbitrais simultâneos para cada pessoa que exerce a função de árbitro. Adicionalmente, no escrito publicado em 25 de janeiro de 2022, o autor desta coluna em conjunto com o Dr. Bruno Guandalini, discorreu acerca dos malefícios econômicos para o Brasil que podem advir caso o referido PL seja aprovado3.
Com o intuito de contribuir junto à Casa Legislativa sobre os perigos gerados pelo PL em questão o CIArb (Chartered Institute of Arbitrators), por meio de sua seção brasileira (Brazil-Branch4), elaborou nota técnica ("Nota Técnica") através de seus membros e fellows, Ricardo Aprigliano (coordenador), Bruno Guandalini, Pedro Ribeiro de Oliveira e o autor desta Coluna. Por meio da aludida Nota Técnica5, o grupo de trabalho procurou identificar defeitos técnicos constantes do PL e que não encontram sintonia com a sua própria Justificação. Resumidamente, a inadequação técnica do PL é revelada pelos seguintes fatores:
a) impõe restrições à liberdade das Partes incompatíveis com o modelo jurídico no qual a arbitragem se funda, tanto no direito brasileiro, como no cenário internacional;
b) transporta para o plano legal aspectos que, quando muito, devem ser regulados consensualmente pelas Partes ou disciplinados no âmbito de instituições arbitrais;
c) impõe insegurança jurídica ao ambiente de negócios, gera aumento de custos de transação, aumento o risco do crescimento de demandas judiciais, menor concorrência e aumento de custos à sociedade, afastando ou reduzindo os investimentos no país;
d) quanto aos árbitros6, propõe modificação para impor-lhes dever de revelar fatos que denotem "dúvida mínima" sobre sua imparcialidade e independência, substituindo o atual critério da "dúvida justificada". Assim, o Brasil passaria a adotar critério isolado, diferente de todos os demais países, muitos dos quais com secular convívio arbitral, dos tratados, de guias e diretrizes internacionais. Dúvida justificável, no sistema da Lei de Arbitragem de hoje, é um conceito juridicamente objetivo, cuja aplicação contribui para segurança jurídica da arbitragem no Brasil. "Dúvida mínima", ao contrário, não é. Sendo esse o critério do legislador, todo e qualquer elemento poderá ser utilizado para tentar, após a decisão de mérito, anular procedimentos arbitrais, a pretexto de violação a deveres de revelação. A instabilidade será enorme e, em pouquíssimo tempo, o instituto correrá sério risco de cair em desuso;
e) limita a quantidade de processos em que um mesmo profissional pode atuar, o que representa intromissão indevida do Estado na atividade profissional e impõe um cerceamento inconstitucional à livre iniciativa7. Ademais, esse controle já é realizado pelos usuários que livremente optam pela arbitragem, sendo desnecessário impor limites por via legal. Importante ressaltar que o cerceamento legislativo da quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar não resultará em procedimentos mais céleres, mas cerceará a escolha dos usuários quanto aos profissionais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, muito especializadas, para as quais o mercado necessita de profissionais capacitados tanto na matéria objeto da disputa quanto na condução de arbitragens;
f) inapropriadamente adiciona a ideia de disponibilidade do árbitro ao texto legal, ao lado do requisito já existente da confiança8. Primeiro, porque aquela já decorre desta, do que resulta em redundância do texto legal. Ademais, a matéria deve ser regulada pelas próprias partes e pelas instituições arbitrais, e não pela lei, o que, diga-se de passagem, já ocorre em termos práticos. Impor semelhante requisito não trará vantagens, tampouco aprimorará o sistema. Ao contrário, adicionará um elemento subjetivo, de aferição racionalmente impossível, que poderá ensejar a ampliação das impugnações e tentativas frívolas de anulação de sentenças arbitrais;
g) regula no plano legal, o que é inadequado, deveres de publicação de certas informações dos processos arbitrais, como a composição do Tribunal Arbitral, o valor da disputa ou mesmo a íntegra das decisões9. São matérias universalmente deixadas ao autorregramento do próprio setor, permitindo que se adote, em cada caso, a solução mais apropriada para aquela disputa em particular. A revelação indiscriminada destas informações suscita o risco de ensejar intimidação, manobras de procrastinação ou pressão sobre partes e árbitros, sem que se vislumbrem vantagens que decorreriam de um modelo legal que impõe, a priori, a divulgação de informações sensíveis e que, como regra, os agentes de mercado optam por manter em caráter reservado. A violação da confidencialidade possui um custo relevante para os agentes econômicos. Em outras palavras, desenvolver negócios em um país que não permite a solução de conflitos legais confidencialmente é mais arriscado e mais caro10. O resultado tenderá a afugentar os melhores profissionais, reduzir a escolha da arbitragem como método adequado de solução de disputas, prejudicando o ambiente de negócios no país;
h) por fim, impede que dirigentes de instituições arbitrais funcionem como árbitros ou advogados em procedimentos nas mesmas instituições, o que igualmente configura vício de inconstitucionalidade, por restringir indevidamente a livre iniciativa dos usuários e a liberdade profissional, além de afugentar os melhores profissionais e impor, pela via legal, uma restrição ao funcionamento das instituições arbitrais que, em termos práticos, deve decorrer da sua autorregulação11.
Em suma, o projeto mira falsos problemas e a eles propõe supostas soluções que, se implementadas, criarão, elas próprias, inúmeros problemas reais. Em termos legais, será um retrocesso ao período anterior à edição da Lei de Arbitragem, com um arcabouço legal que poderá eliminar a adoção da arbitragem no Brasil. No melhor cenário, terá como resultado a redução de casos, a migração das arbitragens brasileiras para outros países e a eliminação do país como possível sede de arbitragens internacionais.
Portanto, mostra-se não só dispensável qualquer mudança legislativa para a regulação da função de árbitro, mas também absolutamente necessária a manutenção da autonomia da vontade das partes e a ausência de limitação do exercício da função de árbitro no Brasil. Tais razões contribuem para que o PL em questão não seja levado adiante.
______________
1 Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021 - Migalhas.
2 Fonte: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 27 dez. 2021.
4 Fundado em 1915, o CIArb é uma organização que congrega inúmeros profissionais atuantes na seara da resolução de disputas (arbitragem, mediação, dispute boards, inter alia) em todo o mundo. Baseada em Londres, conta com aproximadamente 16.000 membros distribuídos em 39 branches em 133 países. Possui, desde 2019, uma representação no Brasil (CIArb Brazil Branch) e, ao longo de sua existência, editou uma série de diretrizes acerca de práticas consolidadas no âmbito da arbitragem internacional e que podem servir como guia útil para a orientação de advogados, in-house counsels e árbitros envolvidos em procedimentos arbitrais. A página do CIArb Brazil pode ser acessada aqui. Acesso em 11 fev. 2022.
5 A íntegra da Nota Técnica pode ser acessada aqui. Acesso em 11 fev. 2022.
6 Conforme proposta de modificação do artigo 14 da Lei de Arbitragem.
7 Conforme proposta de modificação do artigo 13 da Lei de Arbitragem.
8 Conforme proposta de modificação do artigo 13 da Lei de Arbitragem
9 Conforme proposta de introdução dos artigos 5º-A e 5º-B da Lei de Arbitragem.
10 O que igualmente diz respeito à proposta de modificação do artigo 33 da Lei de Arbitragem.
11 Conforme proposta de modificação do artigo 14 da Lei de Arbitragem.