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Revisitando a confidencialidade na arbitragem

terça-feira, 27 de abril de 2021

Atualizado às 08:35

Em recente e polêmica decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"), ao se pronunciar no bojo de ação anulatória de sentença arbitral, decidiu, conforme transcrição parcial da ementa do correspondente julgado:

"Ação anulatória de sentença arbitral. Decisão que indeferiu tutela de urgência para suspensão de efeitos da sentença, assim como indeferiu trâmite do feito em segredo de justiça. Agravo de instrumento dos autores.

Segredo de justiça. A regra do sistema é publicidade dos atos processuais, de acordo com os arts. 5º, LX, e 93, IX, da Constituição Federal. A luz do sol, como afirmado pelo Justice LOUIS BLANDEIS, é o melhor detergente, faz bem à administração da Justiça. A generalizada imposição de segredo nos juízos arbitrais, contrariamente ao que sucede nos processos e julgamentos do Poder Judiciário, "é nociva ao sistema jurídico, por provocar assimetria de informações e obstar a formação do direito (consolidação dos precedentes e da jurisprudência)", afirma muito corretamente a decisão agravada, da lavra da Juíza de Direito PAULA DA ROCHA E SILVA FORMOSO. Os jurisdicionados têm o direito de conhecer a jurisprudência; os empresários, especificamente, o de antever, pela coerência que sempre se espera dos que têm a nobre missão de julgar, o provável resultado dos veredictos, levando-o em consideração ao celebrar negócios mercantis (...)"1.

Não é o objetivo dessas linhas discorrer, de forma aprofundada, sobre a importância do sigilo ou da confidencialidade na arbitragem, o que já foi abordado, com maestria, em diversos escritos2. O que importa aqui é tão somente advertir para os malefícios que a decisão acima mencionada pode trazer para a arbitragem.

Nessas linhas, faz-se referência unicamente à arbitragem comercial, deixando de se fazer considerações às arbitragens envolvendo a administração pública e as que envolvem companhias de capital aberto. No primeiro caso, (administração pública), por disposição expressa legal3, a arbitragem não deve tramitar sob sigilo. Quanto à segunda (arbitragem envolvendo companhias de capital aberto), entende o autor dessas linhas que a arbitragem não deve tramitar totalmente de forma sigilosa, em respeito aos acionistas e investidores da companhia4.

Fouchard, Gaillard e Goldman já destacavam ser a confidencialidade um dos requisitos pelos quais as partes contratantes escolhem a arbitragem para a resolução de suas controvérsias, elencando a confidencialidade como um princípio fundamental da arbitragem comercial5. As especificidades da arbitragem comercial, demonstravam ser ela - arbitragem - feita para o litígio e não o litígio ser feito para arbitragem6. A confidencialidade, se enquadra nessa dita adequação.

A confidencialidade constitui mecanismo importante de proteção das informações e dos dados constantes de um processo cuja publicidade poderia ensejar prejuízo a alguma das partes. José Emílio Nunes Pinto destaca, ademais, outro aspecto, ao explicar que o sigilo na arbitragem visa a permitir que as questões possam ser dirimidas de forma amigável, impedindo que sua existência possa afetar a continuidade das relações contratuais entre as partes, nem que a existência dessa controvérsia possa ser entendida por terceiros como uma ruptura das relações entre as partes7.

Isso porque, do ponto de vista mercadológico, a mera existência de uma demanda judicial pode, por vezes, gerar consideráveis consequências às partes, dado que teria o condão de afetar a percepção de terceiros a respeito das relações, dos procedimentos e até mesmo da saúde financeira dos envolvidos. Dessa forma, a possibilidade de garantir o sigilo total do procedimento arbitral pode ser extremamente valiosa, principalmente em ambientes comerciais extremamente competitivos8.

Sigilo ou confidencialidade, além de elementos intrínsecos à arbitragem comercial9, são objeto de escolha das partes. Com efeito, o poder advindo da autonomia negocial privada das partes, permite que elas possam contender de forma confidencial. Essa autonomia é revelada quando as partes escolhem determinado regulamento a ser aplicado na arbitragem. O sigilo constitui regra fixada em diversos regulamentos arbitrais10.

Foi justamente em razão do natural caráter confidencial da arbitragem comercial e a evolução da doutrina e da jurisprudência brasileira em matéria de arbitragem que levaram o legislador a incluir a coerente disposição contida no art. 189, inciso IV do Código de Processo Civil ("CPC"), segundo a qual: "Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...) IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo".

Diferentemente do quanto sugerido pelo acórdão de lavra do TJSP, a mens legis da referida norma não é a frisada "A generalizada imposição de segredo nos juízos arbitrais" a qual obstaria "formação do direito (consolidação dos precedentes e da jurisprudência)". Muito pelo contrário: pretendeu o legislador, mediante estudo aprofundado e analítico ao longo de anos de prática da arbitragem no Brasil, preservar o funcionamento e a higidez do sistema arbitral, autônomo e dissociado do Poder Estatal. Sabendo que os sistemas arbitral e judicial atuam de forma coordenada e cooperativa, teve êxito o legislador ao aprimorar o sistema processual brasileiro de modo a preservar um dos mais importantes elementos da arbitragem, que é o seu caráter confidencial.

O acórdão de lavra do TJSP parece deixar transparecer que os procedimentos arbitrais conteriam informações privadas para atender aos interesses dos árbitros, que teriam estabelecido, "genericamente o sigilo dos seus procedimentos". Tal afirmação não parecer ser correta. A uma porque aos árbitros cumpre tão somente respeitar a vontade das partes, que, ao escolherem determinado regulamento de câmara que administre o procedimento arbitral, preveja o sigilo da arbitragem em suas regras. A duas porque o sigilo não interessa aos árbitros, mas sim às próprias partes contendentes, que optaram conscientemente por resolver suas controvérsias numa esfera privada, privativa, reservada, cativa e dissociada do Poder Judiciário. E quais seriam as razões para essa escolha? A resposta está no mundo empresarial, em seus agentes de mercado, que, por razões lícitas e próprias a seus interesses, têm o lídimo direito de proteger o seu negócio. Segredo de negócio, nas palavras de Nelson Nery Junior, "é elemento que compõe o estabelecimento empresarial, que se encontra protegido pelo sistema constitucional brasileiro porque decorre da livre iniciativa e da livre concorrência. Existe proteção contratual e extracontratual para o segredo do negócio"11.

Conquanto tenha entendido pela inconstitucionalidade inter partes do art. 189, inciso IV do CPC, o decisum deixou de analisar a essencialidade do segredo de negócio, o qual constitui elemento "protegido pelas cláusulas constitucionais da livre iniciativa (CF 1.º IV e 170 caput) e da livre concorrência (CF 170 IV), com suas repercussões na legislação infraconstitucional (v.g. proteção contra o crime de concorrência desleal tipificado na LPI 195 XI e XI e § 1.º e infração à ordem econômica descrita na lei 8884/94 21 XVI )"12.

De acordo com as premissas acima, é de suma importância para as partes que contendem numa arbitragem comercial, que não venham a público dados referentes aos seus negócios. Ainda mais quando o contrato que contém a cláusula compromissória é dotado de cláusula de confidencialidade, em virtude das condições comerciais lá impostas. A própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), antes mesmo da reforma do CPC em 2015 já possuía entendimento consolidado da admissão do "processamento em segredo de justiça de ações cuja discussão envolva informações comerciais de caráter confidencial e estratégico"13.

Como é sabido, a lei não contém palavras inúteis, e, se a norma processual estabeleceu que tramitam em segredo de justiça os processos que envolvam arbitragem, tal disposição não foi acrescida de forma acidental, devendo ser levada em consideração a sua razão de ser, bem como a sua utilidade14-15.

A prevalecer a decisão objeto dessas linhas, dois problemas serão criados: o primeiro, de caráter jurídico, eis que se violará regra pactuada pelas partes e elemento essencial da arbitragem comercial, que não passou despercebido pelo legislador ao editar a norma do art. 189, inciso IV do CPC; o segundo, de caráter econômico, uma vez que o afastamento do sigilo da arbitragem durante a fase pós-arbitral, poderá gerar instabilidade entre os agentes econômicos, que procuram na arbitragem comercial segurança e previsibilidade no âmbito de seus negócios16. O descarte do sigilo da arbitragem poderá atenuar o interesse das partes em resolver suas controvérsias neste meio especialíssimo, restrito, privativo e adequado, agravando o bom funcionamento do mercado17.

No ano em que a Lei de Arbitragem completa 25 anos desde a sua promulgação, para que a arbitragem permaneça no Brasil como o principal método de resolução de conflitos empresariais e mantenha o seu sucesso junto ao empresariado, é imprescindível que se respeite a irrestrita confidencialidade do procedimento - desde a fase pré-arbitral até a fase pós-arbitral -  mantendo-se hígida a regra constante do art. 189, inciso IV do CPC e, ao fim e ao cabo, garantindo-se segurança jurídica e previsibilidade aos usuários da arbitragem comercial.

__________

1 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000, rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 02.03.2021.

2 Aqui, alguns exemplos: PINTO, José Emilio Nunes. A confidencialidade na arbitragem, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 2, 6, p. 25-36, jul./set. 2005; FICHTNER, José Antonio; MANHEIMER, Sergio Nelson e MONTEIRO, André Luis. A confidencialidade da arbitragem: regra geral e exceções, Revista de Direito Privado, v. 49, 2012, p. 227-285, jan./mar. 2012; COSTA, Guilherme Recena. Integração contratual, confidencialidade na arbitragem e segredo de justiça, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 48, p. 69-89, jan./mar. 2016; GAGLIARDI, Rafael Villar. Confidencialidade na arbitragem comercial internacional, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 36, p. 95-135, jan/mar. 2013. 

3 Art. 2º, § 3º da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). 

4 O que, aliás, foi bem observado por José Emilio Nunes Pinto: "The second case in which confidentiality is banned is where any arbitral proceeding deals with disputes involving listed companies. Depending on the outcome, a given arbitration may increase or reduce the enterprise value of a listed company. The outcome of the arbitration may thus affect the trading of listed shares positively or negatively. The limitation on confidentiality in such cases is aimed at protecting a valuable intangible asset. It is the interests of the community of shareholders to be kept abreast of events that may affect the listed company and ultimately the access to information, the latter being an important pillar of public markets. In such cases, the regulatory agencies in charge of capital markets offer standard communication systems for this specific purpose." ("Ceci n'est pas un Article". Dossier of the ICC Institute of World Business Law: Is Arbitration Only As Good as the Arbitrator? Status, Powers and Role of the Arbitrator, n. 131, 2011). 

5 Relatam ainda Fouchard, Gaillard e Goldman oportunidade em que a Corte de Apelações de Paris puniu uma parte que interpôs recurso perante jurisdição incompetente e que permitiu debates públicos sobre fatos que deveriam permanecer confidenciais. FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 629. 

6 FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. 

7 PINTO, José Emilio Nunes. A confidencialidade na arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 2, 6, p. 25-36, jul./set. 2005. 

8 Segundo Luiz Olavo Baptista: "Em geral, nas arbitragens internacionais a confidencialidade é vista como uma qualidade, pois serve para proteger os litigantes e seus problemas de curiosidade de competidores. Também serve proteger segredos comerciais ou industriais valiosos para as partes. Por essa razão, somente os participantes, seus advogados, os árbitros e, em parte, os peritos, tal como pessoas que exercem funções de secretaria, têm acesso ao procedimento. Mesmo assim, há caso em que a proteção de segredos profissionais, industriais ou comerciais levam as partes a exigir um grau de confidencialidade especial para certas informações e documentos". (Arbitragem comercial e internacional. São Paulo: Lex Magister, 2011, p. 219). 

9 Nesse sentido, vale citar estudo elaborado por José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luis Monteiro, que exaltam a confidencialidade como uma verdadeira qualidade da arbitragem (A confidencialidade da arbitragem: regra geral e exceções, Revista de Direito Privado, v. 49, 2012, p. 227-285, jan./mar. 2012). 

10 A título de exemplo, cita-se o 9º do Regulamento de Arbitragem da CCI (Câmara de Comércio Internacional), o qual indica ser estritamente confidencial o procedimento arbitral, salvo acordo em contrário entre as partes ou se vedado pela lei aplicável à arbitragem. Fonte: (iccwbo.org). Acesso em 20 abr. 2021. 

11 NERY JÚNIOR, Nelson. Segredo do negócio - livre iniciativa, Soluções Práticas. p. 361-370, set. 2010, 366. 

12 NERY JÚNIOR, Nelson. Segredo do negócio - livre iniciativa, Soluções Práticas. p. 361-370, set. 2010, 366-367. 

13 Nesse sentido ver STJ, AgRg na MC 14.949-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.05.2009, DJe 18.06.2009. No mesmo sentido: (STJ, Pet no AREsp: 1.191.712-SP, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 18.12.2017; STJ, Pet no REsp 1.528.739-R, rel. Min. Assusete Magalhães, j. 20.02.2019; STJ, REsp 1.082.951-PR, rel. Min. Raul Araújo, j. 06.08.2015; e STJ, REsp: 1.217.171-RJ, rel. Min. Marco Buzzi, j. 05.09.2019. 

14 A esse respeito, vale citar a opinião de Ricardo Quass Duarte: "Além disso, considerando a importância da arbitragem como mecanismo de resolução de disputas, há manifesto interesse social em que a segurança jurídica seja garantida e a vontade das partes de se submeter à arbitragem e de manter o procedimento sigiloso seja respeitada. Em realidade, seria contrário ao interesse social que o Estado estimulasse a arbitragem e, ao mesmo tempo, negasse a aplicação de uma de suas principais características (...)". E, ao refutar a pretensa inconstitucionalidade do art. 189, inciso IV do CPC, conclui: "Com o devido respeito, esse entendimento também não se revela correto, pois não faz nenhum sentido preservar-se o sigilo do procedimento arbitral durante toda a sua tramitação e, no momento da execução da sentença, escancarar publicamente o que as partes quiseram proteger". Fonte: Arbitragem e sigilo - Estadão - Souto Correa Advogados. Acesso em 20 abr. 2021. 

15 A norma contida no art. 189, inciso IV do CPC, foi também interpretada de forma correta pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, que, em seu Enunciado 13, dispôs: "O disposto no inciso IV do art. 189 abrange todo e qualquer ato judicial relacionado à arbitragem, desde que a confidencialidade seja comprovada perante o Poder Judiciário, ressalvada em qualquer caso a divulgação das decisões, preservada a identidade das partes e os fatos da causa que as identifiquem". VIII Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis, Coord. Fredie Didier Jr., Florianópolis, 24, 25 e 26 de março de 2017. 

16 Segundo Paula Forgioni: "Eis a mola propulsora do direito comercial: quanto maior o grau de segurança e de previsibilidade jurídicas proporcionadas pelo sistema, mais azeitado o fluxo de relações econômicas. A relação entre segurança, previsibilidade e funcionamento do sistema, explicada por Weber é base do pensamento de juristas modernos, é razão determinante da própria gênese do direito comercial". FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios jurídicos empresariais no novo código civil brasileiro. Revista de Direito Mercantil, v. 130, p. 12.

17 O funcionamento do mercado, a chamada "praxe mercantil", bem como os padrões de conduta melhor adaptados ao seu funcionamento é descrito com clareza por Paula Forgioni (A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 5ª edição, revista, atualizada e ampliada, 2021, p. 168-174).