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O negro é lindo

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Atualizado em 24 de novembro de 2015 15:04

O Brasil comemorou, dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. Referências históricas singulares justificam a celebração. Buscando a raiz africana do Movimento Consciência Negra, a coluna presta uma homenagem ao estudante de medicina, Steve Biko, fundador do grupo na África do Sul.

O sorriso contagiante de Biko, sua incomum inteligência, aliada ao ímpeto de uma juventude com sede de liberdade, serviram como ferramentas entregues àquele charmoso jovem de trinta e poucos anos. "O negro é lindo", repetia Biko, acalentando a auto-estima dos que eram esmagados pelo apartheid.

A luz irradiada pelas suas palavras e pensamentos intimidavam aqueles cujo alimento era a escuridão de ideias e propósitos. Atormentados pelo preconceito, as autoridades do apartheid não tardariam a ofuscar o arco-íris de esperança que riscava o horizonte africano sempre que Biko falava ou escrevia.

O Movimento Consciência Negra lutou por igualdade. Crente num amor próprio indestrutível, Biko introduziu um debate seminal sobre as vítimas do racismo e do colonialismo: a degradação de sua auto-estima e o complexo de inferioridade.

Uma de suas mais marcantes declaração foi a seguinte: "Para alcançar uma ação efetiva, você tem que ser uma parte viva da África e do seu pensamento; você tem que ser um elemento desta energia popular que é inteiramente destinada à liberdade, ao progresso e à felicidade da África"1. O jovem estudante de medicina plantou felicidade num chão de tristeza. No reino das dores, Biko trouxe alívio.

As forças do apartheid, contudo, seguiram cruéis. Era difícil frear o encanto irresistível daquele negro. Só a força o faria. Steve Biko foi preso em agosto de 1977 por tentar viajar dentro do seu próprio país.

Um jovem, no auge da vida, viu cair sobre si o insuportável fardo de uma covardia sem limites. Biko foi barbaramente espancado. Um médico foi vê-lo na cadeia. Biko estava nu, jogado sobre o chão, emborcado, com a pele negra povoada por hematomas. Eram lesões irreversíveis. Foi fácil o médico perceber, pelo inchaço inaceitável, o traumatismo craniano. Ele recomendou que Biko fosse imediatamente levado ao hospital mais próximo. "Ele morrerá", alertou. Os policiais jogaram o fundador do Movimento Consciência Negra na carroceria de uma caminhonete. Decidiram viajar até o hospital mais distante. Os saltos do veículo sobre a pista esburacada faziam o corpo quicar como um saco de batatas. Aquele que era um líder sob os olhos de sua gente, era caçado como um demônio pelo apartheid.

Dias depois, Biko morreu. Em seu atestado de óbito, anotaram: "greve de fome". Depois de torturar e matar, vandalizaram sua memória. Sob o céu da felicidade, há muitas justas moradas. O apartheid não tolerava nenhuma delas.

Para combater essas cicatrizes, o constitucionalismo do continente tem se valido de um valor comum a nós brasileiros: o direito à felicidade. Como o filósofo senegalês Leopold Sedar Senghor disse, a emoção tem natureza africana.

O artigo 1º da Constituição da Libéria (1986) diz que o povo tem o direito de alterar e reformar o governo sempre que a segurança e a "felicidade" assim exigirem. No Egito, a Constituição de 2004 invoca "um lugar de felicidade comum para seu povo". Na Namíbia (1990), assegura-se o direito à busca da felicidade.

Tentando fixar o princípio do nunca mais quanto à exploração econômica, o artigo 36(1) da Constituição de Gana (1992) dispõe que o Estado deve tomar toda e qualquer medida para assegurar que a economia nacional seja gerida de modo a maximizar o grau de desenvolvimento econômico e assegurar o máximo de bem-estar, liberdade e "felicidade" de todos. De igual modo, a Constituição da Nigéria (1999), diz que o Estado deve controlar a economia nacional de tal modo a assegurar o máximo bem-estar, liberdade e "felicidade" com base na justiça social e igualdade de status e oportunidade (art. 16(1)(b)). Em Suazilândia, a Constituição de 2005 garante a paz, a ordem, o bom governo, a felicidade e o bem-estar das pessoas. Nela, há a mesma redação dos dispositivos acima. O artigo 59(1) diz: "O Estado deve adotar toda medida necessária a assegurar que a economia nacional é gerida de tal maneira a maximizar o índice de desenvolvimento econômico e a assegurar o bem-estar, liberdade e felicidade de cada pessoa na Suazilândia, fornecendo meios de vida adequados, empregos compatíveis e assistência pública aos necessitados". Na África do Sul, o mais importante documento de libertação - o Freedom Charter - usa o termo bem-estar: "Toda a indústria e o comércio deve ser controlado para assistir o bem-estar das pessoas".

Steve Biko já alertava para o que ele intitulava "tendências capitalistas exploradoras". Não se trata de uma postura miserável diante do mercado, mas de uma legítima defesa contra as mazelas legadas por aqueles que acreditaram num mercado baseado na exploração insustentável, no domínio abominável de uns sobre os outros e na superioridade baseada na cor da pele. Inserir um compromisso com a felicidade das pessoas quanto à gestão da riqueza é uma forma de dizer "nunca mais".

O Movimento Consciência Negra reconhecia a ligação entre o racismo e a destituição econômica. Não há liberdade na miséria. No apartheid, a pobreza tinha uma única cor. "Não precisa ser dito que os pobres são os negros"2, disse Biko.

No julgamento em 1976 (BPC-Trial), em razão da sua militância política, Steve Biko se viu diante do Juiz Boshoff, que culpava os ocupantes ilegais pela violência nas towships (favelas). Biko respondeu: "Há uma razão muito mais fundamental; é a ausência de vida abundante para as pessoas que vivem lá. Com uma vida abundante..., as pessoas conquistam as coisas que elas querem".

Steve Biko defendeu, mais do que qualquer outra pessoa, o princípio "um homem, um voto", base da democracia. "O que nós desejamos não é só visibilidade negra, mas uma real participação", dizia. Para ele, "os negros na África do Sul não têm mostrado um mínimo sinal de pensamento novo desde o banimento dos partidos políticos negros"3. Como se vê, uma das primeiras medidas implementadas pelo apartheid foi privar os negros da participação popular. Com isso, de animais políticos tornavam-se corpos sem vida. Mas Biko não esqueceu da democracia.

"Um dos princípios que são normalmente assegurados é um sistema de feedback, de discussão, entre aqueles que formulam políticas e aqueles que devem perceber, aceitar ou rejeitar a política. Eu tenho o direito de ser consultado pelo meu governo sobre qualquer questão"4, arrematou Steve Biko, clamando por democracia.

O cair dos céus veio dia 17 de março de 1961. Do rádio, o fim: "A política do desenvolvimento separado é destinada à felicidade, segurança e estabilidade (...) tanto para o povo Bantu como para os brancos". Foi a primeira frase do Primeiro Ministro da União da África do Sul, Hendrik Verwoerd. Era a Mensagem à Nação. "Desenvolvimento separado" era um eufemismo macabro. "Nós devemos providenciar a todas as raças felicidade e prosperidade"5, arrematou. Verwoerd se tornou "o arquiteto do apartheid". A liberdade também se foi.

O apartheid, na verdade, era uma forma de sadismo. Biko citou o prazer do escritor branco Barnett Potters ao responsabilizar os negros pela exploração econômica a que eram submetidos. "Podemos ouvir Barnett Potters concluindo com uma aparante satisfação e um senso de triunfo sádico que a culpa do homem negro está em seus genes"6, afirmou.

Potters dissera que os negros mereciam sofrer. "Eles estão vivos graças a doações, empréstimos e várias formas de subvenções, mas eles contribuem pouco ou nada para a soma da felicidade humana e o bem-estar, e menos ainda para o total do conhecimento e bondade humanas. Eles são o fardo da nossa época"7, vomitou ele.

Não havia, no apartheid, respeito à dignidade dos negros. Uma dignidade enfatizada pelo fundador do Movimento Consciência Negra, que cravou: "Nós cremos na bondade inerente ao homem. Algo a ser desfrutado. Nós consideramos que a nossa vida coletiva não é um acidente infeliz que justifica uma competição interminável entre nós, mas um ato deliberado de Deus para nos tornar uma comunidade de irmãos e irmãs envolvidos conjuntamente na busca de uma resposta coletiva aos variados problemas da vida. Assim, em tudo o que fazemos, nós sempre colocamos primeiro o homem e, portanto, toda a nossa ação é normalmente orientada para a ação conjunta da comunidade, ao invés do individualismo, que é a marca da abordagem capitalista. Nós sempre nos abstivemos de usar as pessoas como trampolins. Em vez disso, estamos preparados para ter um progresso muito mais lento no esforço de nos certificarmos que todos nós estamos marchando na mesma melodia"8.

O Movimento Consciência Negra não lutou pela supremacia negra. Como Biko enfatizou: "A África do Sul é um país em que ambos, negros e brancos, vivem e devem continuar a viver juntos". Para ele, "a presente sociedade sul-africana é uma sociedade plural com contribuições ao seu desenvolvimento dadas por todos os segmentos da comunidade, em outras palavras, falamos tanto dos negros como dos brancos". Biko insistia: "Não temos qualquer intenção de ver as pessoas brancas deixar este país. Temos a intenção de vê-los ficar aqui, lado a lado com a gente, mantendo uma sociedade na qual todos contribuam proporcionalmente".

No já referido julgamento, o advogado de defesa, Soggot, indagou o que Biko faria caso o apartheid tivesse fim. "Uma sociedade aberta, um homem, um voto, sem referência à cor da pele", respondeu. "Não é nossa intenção gerar um sentimento anti-brancos entre os nossos membros"9, finalizou Steve Biko.

Num dos seus últimos discursos, num campo de futebol tomado por negros, já tendo sido banido pelas autoridades, Biko deixou sair, de sua boca, a voz dos anjos: "Vamos estar diante deles. Mas com a mão aberta, também. Para dizer que todos nós podemos construir uma África do Sul onde todos viveremos. Uma África do Sul igual, para negros e brancos. Uma África do Sul tão linda quanto esta terra é. Uma África do Sul tão linda como nós somos".

O Movimento Consciência Negra fez com que todos aqueles que, esmagados pela selvageria do apartheid, vissem beleza na cor negra que, como um presente, reluzia em suas peles. "O negro é lindo", era o mote. Quem é capaz de discordar?

__________

1 Steve Biko. 2015. I Write what I Like: A selection of his writings. Edited with a Personal Memoir by Aelred Stubbs C.R. Preface by Archbishop Desmond Tutu. With a New Introduction by Nkosinathi Biko. Johannesburg: Picador, p. 35.

2 Ibidem, p. 107.

3 Ibidem, p. 73.

4 Ibidem, p. 145.

5 The truth about South Africa: Address by the Hon. The Prime Minister of the Union of South Africa Dr. H.F. Verwoerd before the South Africa Club in the Savoy Hotel, London, on Friday, 17th March, 1961 Unknown Binding - 1961.

6 Ibidem, p. 78.

7 Utica NY Daily Press. May 17, Monday, 1971.

8 Ibidem, p. 46.

9 Ibidem, p. 139