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África do Sul Connection nº 27

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Atualizado às 09:11

Rumo ao funeral

Eu estava na Cidade do Cabo, no final de 2013, no funeral de Nelson Mandela. O Grand Parade, diante da sede do Parlamento, era anunciado há dias. Eu tinha levado uma bandeira do Brasil e achei por bem tê-la comigo.

"Grand Parade! Grand Parade!" - gritou o cobrador da van, abrindo a porta com o carro ainda em movimento.

"Eu irei!" - berrei, com a mão levantada, sob um sol digno de sertão brasileiro.

O motorista freou bruscamente. Enfronhei-me no meio do monte de gente. Eu estava convencido de que a esperança é a emoção pulsante da trajetória constitucional da África do Sul e que essa marca será irradiada para outras nações, estabelecendo um novo caractere da luta por direitos fundamentais. O processo foi marcado pela convicção de que o medo havia dado espaço para a superação das dores do passado.

O ramalhete

Precisei comprar flores. Comprei um belo ramalhete. Do campo, recém-colhidas, de cores fortes e um perfume natural muito agradável, elas estabeleciam a transição do ar fúnebre de um enterro para a atmosfera sublime da chegada ao paraíso.

"É para Madiba?" - perguntou a senhora.

"Isso mesmo!" - respondi.

Ela, com um pano sobre a cabeça que me impedia de ver seus cabelos e vestindo uma longa saia que alcançava os pés, se levantou da cadeira e foi vagarosamente até o fundo da banca. Era uma senhora negra, forte, como as mulheres que compuseram a minha infância, em Nazaré do Piauí. Ouvi que cantava algo que me fez recordar cânticos religiosos com os quais eu estava acostumado. Ela atravessou a viela estreita que se formava cercada pelas flores e pelos vasos à venda. Caminhava lentamente, com as ancas largas em movimento. De lá, voltou com um ramalhete maior e mais bonito.

"Leve este!" - disse, com um inglês tomado pelo forte sotaque africano. 

O afeto

No funeral de Madiba, pessoas apareciam por todos os lados. Não havia idade, cor, sexo, origem..., nada, capaz de separá-las. Eram casais, senhoras idosas, crianças no colo dos seus pais, estrangeiros, trabalhadores..., enfim, muita gente que, junta, dava o tom da diversidade da qual se revestia aquele funeral. Eu acompanhei o fluxo.

No momento em que entrei na fila de condolências, senti um sincero sentimento de perda. Mandela não era meu avô, nem um ente querido, sequer o líder do meu país, mas era difícil não me ligar às suas ideias, ao seu legado e àquela atmosfera. A fila ficava à frente do Parlamento, na rua, separada por uma cerca posta antes de alcançar a praça. Um telão transmitia a solenidade espalhada por cidades da África do Sul, incluindo a partida do corpo rumo a Qunu, onde seria enterrado.

Eu vi flores, cartas, bandeiras de vários países, cartolinas com desenhos de crianças, muitas delas com corações feitos em lápis de cor. Vi também fotos de Mandela, cartazes com suas frases mais famosas e recortes de jornais. Era um mundo de coisas, papéis, objetos pessoais vindos dos mais distantes lugares do planeta, de pessoas que, por alguma razão, faziam questão de deixar, ali, suas manifestações.

Por trás de mim, um pai guiou sua filha pequena, branca como a neve e com lisos cabelos da cor de ouro, até o alambrado onde tudo estava depositado. A criança segurava um cão de pelúcia branco, sorridente, dentro de uma caixa plástica transparente. Ela deixou o cão ali, sobre um verdadeiro campo de flores. Então, olhou para seu pai e seguiu, dando-lhe as mãos pequeninas. "Era o brinquedo predileto. Ela quis que Madiba não se sentisse sozinho no novo lar" - justificou o pai, diante do olhar que eu não consegui controlar.

A bandeira do Brasil

Ao final da cerimônia de sepultamento, abri a bandeira do Brasil e a pus sobre as costas. Abaixei-me para deixar o ramalhete que trazia comigo. Olhei novamente para todas as demonstrações de afeto. Então, me levantei. Caminhei um pouco com a bandeira, enquanto procurava um espaço para fixá-la de forma a ficar visível.

"Por favor! O senhor poderia dar uma declaração?" - perguntou o apresentador da ETV, emissora sul-africana. Ao me ver com a bandeira, chamou seu cinegrafista e veio discretamente em minha direção.

"Vou fixar essa bandeira e saio logo" - respondi.

"Fazemos questão que fale segurando sua bandeira" - retrucou.

Eu já havia assinado o Livro de Condolências e saído da área reservada às homenagens. Estava diante da Houses of Parliament e o jornalista da ETV pedia para que o cinegrafista destacasse a bandeira do Brasil. Ele me ajudou a colocar a bandeira na frente do meu corpo. Queriam alternar a minha fala com imagens dela. 

A imprensa

"O que representa a morte de Nelson Mandela para os brasileiros?" - perguntou o apresentador da ETV. Eu não sabia bem o que responder. Estava envergonhado por notar tantas pessoas olhando e um número considerável de jornalistas e fotógrafos. Outros, percebendo a movimentação, se aproximaram, incluindo uma profissional do Die Burger, o conceituado periódico sul-africano.

Simplesmente deixei sair: "Ele foi um líder mundial extraordinário. A luta dele foi a luta da esperança, que é nossa também" - declarei.

Em seguida, a profissional do Die Burger me abordou. Ela também queria uma declaração. Eu disse: "Todo mundo no Brasil fala sobre a morte de Mandela. Ele era um líder excepcional e uma inspiração para o mundo". Ela anotou e partiu. Dia seguinte, o jornal estampou a matéria com a minha foto na capa do caderno.

O prazer em Clifton

Tendo ido embora da Praça do Parlamento, onde ocorria a solenidade por ocasião do funeral de Nelson Mandela, saltei da van em Clifton, uma praia paradisíaca encravada numa área residencial da Cidade do Cabo. Tirei o sapato para sentir a areia fria ultrapassando os dedos até cobrir a parte superior dos meus pés, escorrendo como uma cachoeira de micro-cristais.

Um sol extasiante tinha seus raios refletidos pelo mar frio de Clifton. Ondas já sem força banhavam a areia branca, enquanto casais caminhavam pela praia. Árvores mostravam um verde lindo e eram desafiadas pelas rajadas de vento. As laterais da vista eram premiadas com montanhas indescritíveis. O som das ondas do mar parecia uma orquestra natural que me convidava a refletir: Quanto de sofrimento uma pessoa pode suportar pela esperança de que devemos viver num mundo igualitário?  

Mandela, num percurso repleto de desacertos e que contou, na sua base, com muitos episódios violentos, inspirou um povo a seguir com esperança em busca de uma vida mais justa, abraçando o caminho da reconciliação. Esta é uma lição que devemos aprender e implementar, sempre que formos chamados a participar da jornada pela construção de direito fundamentais.

Adeus, Madiba!

De volta ao lugar onde deixou depositados seus momentos mais felizes, a aldeia de Qunu, Madiba, finalmente, descansou. Qunu era tudo o que ele conhecia e ele a amava do modo incondicional como que uma criança ama seu primeiro lar.

"Eu vi as choupanas simples e as pessoas com seus afazeres; o riacho onde eu havia mergulhado e brincado com os outros garotos; os milharais e pastagens verdes onde manadas e rebanhos pastavam preguiçosamente. Imaginei meus amigos caçando pequenas aves, bebendo o leite doce do úbere da vaca e se divertindo na lagoa localizada no fundo do riacho. Acima de tudo, meus olhos se puseram sobre as três choupanas simples onde eu havia desfrutado o amor e a proteção da minha mãe. Eram a essas três choupanas que eu associava a toda a minha felicidade, à própria vida."

O trecho acima foi escrito por Nelson Mandela, em suas últimas anotações. Referia-se ao lugar para onde, tempos depois, seu corpo seria enviado, no sepultamento de um extraordinário homem que, sem ser um santo, nem buscar a perfeição, manteve viva o quanto pôde a esperança por um amanhã mais justo. Um amanhã, que é nosso também.