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Os princípios do CDC e os direitos básicos do consumidor. Quarta parte

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Atualizado em 13 de novembro de 2024 07:57

Continuo examinando os princípios da lei 8078/90 (CDC) e os direitos básicos lá estabelecidos.

Vimos que o art. 4º, inciso III  do CDC dispõe:

"Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:       

(...)

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;"

Examinemos, agora, a boa-fé.

Com efeito, o princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Com isso, tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa da partem mais fraca, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais do art. 170 sua razão de ser.

Mas, não é só isso. Hodiernamente há de se levar em conta o princípio da boa-fé objetiva no papel que ele desempenha na construção do próprio sistema jurídico, assim como na aplicação efetiva dos demais princípios e normas jurídicas, todos suporte do modelo da sociedade capitalista contemporânea.

Com efeito, a hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama, no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do status quo; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas.

Realmente, são várias as teorias que pretendem dar conta do fenômeno produzido no seio social enquanto ação humana ou comportamento humano na sua correlação com as normas em geral e jurídica em particular. Pois bem. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como topói, isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto1. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário2.

Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução do problema. Dentre as várias alternativas, chamamos atenção aqui para standards, tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "pessoa comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom-senso", "senso comum" etc.

É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas aqui como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, pois sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma incons-ciente - intuitiva -, um foro de legitimidade, uma vez que produzidos na realidade como um fato inexorável.

Pois bem. O standard da boa-fé objetiva é um desses topos fundamentais que, inserido no contexto linguístico dos operadores do direito, estudiosos da sociedade capitalista contemporânea, no Brasil, por ser erigido a princípio na lei 8.078/90, foi adotado pelo atual CC e vem sendo reconhecido como elemento da base do próprio sistema jurídico constitucional.

Examine-se, pois, o funcionamento da boa-fé objetiva: o intérprete lança mão dela, utilizando-a como um modelo, um standard (um topos) a ser adotado na verificação do caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva que lhe é subjacente, de maneira que todas as partes envolvidas (quer seja credora, devedora, interveniente, ofertante, adquirente, estipulante etc.) devem-na respeitar.

A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto deve se amoldar. Ela aponta, pois, para um comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes, a fim de garantir o respeito ao direito da outra. Ela é um modelo principiológico que visa garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude cooperativa que seja capaz de realizar o intento da relação jurídica legitimamente estabelecida.

Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o magistrado ou a magistrada encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele ou ela deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado para que aquele caso concreto pudesse estar adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standart, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas.

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Continua na próxima semana

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1 V., a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e jurisprudência, Brasília: UNB, 1980, passim.

2 Como diz Tércio Sampaio Ferraz Jr. ao apresentar o funcionamento da tópica material: A tópica material, diz ele, proporciona, às partes, "um repertório de 'pontos de vista' que elas podem assumir (ou criar), no intuito de persuadir (ou dissuadir) o receptor da sua ação linguística. Os partícipes do discurso judicial, ao desejar influenciar o decurso do diálogo-contra (persuasivo), precisam produzir uma impressão convincente e confiante; as suas ações linguísticas devem ser dignas de crédito" (Direito, retórica e comunicação. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 87).