Alguns aspectos históricos para bem entender o Código de Defesa do Consumidor - Parte 2
quinta-feira, 26 de outubro de 2023
Atualizado às 08:48
Hoje continuo a cuidar de mais alguns aspectos históricos para uma boa compreensão do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
No artigo anterior, mostrei que partir do período pós-Revolução Industrial, com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção.
Pois bem. Este é o modo de produção, de oferta de produtos e serviços de massa do século XX. Só que, no caso brasileiro, nós aplicamos até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade.
Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto e, como isso se deu durante quase todo o século XX, tivemos dificuldade para entender e aplicar o CDC em todos os seus aspectos por muito tempo. Dou um exemplo: na questão contratual, nossa memória privatista pressupunha que, quando vemos o contrato, assistimos ao aforismo que diz pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade.
Ora, nas relações contratuais no direito civil, no direito privado, durante todo o século XX havia o pressuposto de que aqueles que querem contratar, sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento subjetivo volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo: proposições que, organizadas em forma de cláusulas impressas num pedaço de papel, faziam surgir o contrato escrito. Era a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto elemento subjetivo. Era a escrita - o tipo de contrato - que o direito civil tradicional pretendia controlar1.
Então, quando nos referíamos às relações contratuais privatistas, o que se fazia era uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que deveriam representar a vontade subjetiva das partes que estavam lá, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados.
Acontece que isto não servia para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais.
Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados em contratos de adesão, verbais ou escritos, elaborados unilateralmente pelos fornecedores. Tais elementos, o CDC pretendeu controlar, e de forma inteligente. O problema foi que, a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, geraram uma série de equívocos. Até a oferta, para ilustrarmos com mais um exemplo, é diferente nos dois regimes: no direito privado é um convite à oferta; no direito do consumidor, é uma oferta que vincula o ofertante.
Enfim, essa foi uma situação que, por um bom tempo, acabou afetando o entendimento da lei.
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1 Claro que não estamos esquecendo o contrato verbal, pois ele tem a mesma característica de tentativa de objetividade; só não foi escrito.