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O mercado de medicamentos não tem base moral?

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Atualizado às 08:36

Albert Sabin, cientista que dispensa apresentações,  descobriu a vacina que leva seu nome e que foi aprovada pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos em 1961. Seu produto, preparado com o vírus atenuado da pólio, poderia ser tomado oralmente e prevenia a contração da moléstia.

Sabin renunciou aos direitos de patente da vacina que criou, facilitando sua difusão e permitindo que crianças de todo o mundo fossem imunizadas contra a poliomielite. Sua descoberta efetivamente eliminou a pólio em quase todo o mundo

Não se fazem mais cientistas como Sabin. Atualmente, a corrida por registros e  patentes é uma forte marca da "inventividade humana", aliás, na maior parte dos casos, produzidas por cientistas-empregados das grandes corporações de medicina, biologia e medicamentos. Onde foi parar a humanidade da ciência?

Quando um produto afeta a vida ou a saúde das pessoas, o preço justo deveria prevalecer por suas implicações morais.

Mas, o mercado engole tudo. E, na medida em que os conservadores liberais passaram a dominar o chamado livre mercado e a defender que a economia deve ser deixada a si mesma, sendo que a ciência econômica deve ser neutra, isto é, não pode emitir juízos de valor, mas apenas descrever os fatos, parece que algo do humano se perdeu. E, de fato, um ser humano absolutamente "neutro", sem uma base moral, não é "bem" um ser humano, pois falta algo nele. Falta um mínimo de senso de solidariedade, de bom senso, de conduta justa etc., enfim, de "humanidade". 

Lembro aqui o caso bastante conhecido de um casal de historiadores que descobriu que seu filho Lorenzo de 8 anos de idade era portador de uma doença rara e degenerativa diagnosticada como adrenoleucodistrofia (ALD), que provoca uma incurável degeneração do cérebro, levando o paciente a morte em pouco tempo.

A história de Lorenzo e seus pais ficou mundialmente conhecida em função da realização do excelente filme "O óleo de Lorenzo"1. O filme é uma lição de vida e a vida de Augusto e Michaela Odone - os pais de Lorenzo --  uma lição de humanidade. Haveria muito o que falar sobre o filme (e a quem não assistiu, indico), mas vou centrar num dos aspectos: o do mercado (ou da falta dele, no caso).

Mas, é necessário um pequeno resumo: O drama começa quando o casal descobre que o filho Lorenzo é portador da ALD. De acordo com os médicos, o garoto não viveria mais do que três anos. O desespero toma conta dos pais e afeta fortemente  Michaela, pois Lorenzo, além de ser seu único filho, herdara a patogenidade dela, eis que a ALD transmite-se exclusivamente de mãe para filho (somente do sexo masculino) devido a uma disfunção genética relacionada com o cromossomo sexual X. Apenas as mulheres são portadoras, havendo 50% de chances de transmitirem a doença  para o filho.

Augusto e Michaela acabam por se envolver com os membros de uma ONG de pais com filhos portadores de ALD, porém constatam que esses pais se preocupavam principalmente em aceitar a doença, buscando somente a conformidade e não a cura.

Inconformado com essa situação, Augusto, o pai, resolve dedicar sua vida para descobrir os fatores determinantes da doença. E, numa verdadeira epopeia, ele e Michaela acabam por descobrir um problema com a dieta dos doentes: utilizando um  óleo especial de oliva, Lorenzo conseguiu, apesar de não ter voltado  ao estado normal de saúde, barrar a doença, com melhoras significativas (Lorenzo Odone morreu aos 30 anos, em 30 de maio de 2008, um dia depois de fazer trinta anos, por causa de uma pneumonia. Ele viveu 20 anos a mais do que os médicos previram).

Augusto Odone teve o reconhecimento dos seus estudos pela comunidade médica e acadêmica americanas: o título de Doutor honoris causa por sua imensa contribuição à ciência e à medicina.

Eis a atuação do mercado: Os Odone haviam resolvido organizar um simpósio para ouvir cientistas e, juntando esforços, buscar uma saída para o problema. Daí, surgiram as questões mercadológicas. O médico pesquisador que tinha desenvolvido um  modelo de dieta (que não estava dando certo) disse que os custos para um evento daquele porte eram altíssimos  e que eles não conseguiriam angariar fundos para tanto. Mas, o principal: não havia interesse naquela doença, pois ela não tinha uma grande prevalência no mundo. O número de doentes era insuficiente para motivar e sustentar investimentos para a pesquisa. (Os Odone não desistiram e conseguiram realizar o Simpósio, gastando o dinheiro que tinham e recebendo doações de amigos e colegas de trabalho).

A história dos Odone mostra como age o mercado de pesquisa: é a quantidade de doentes que importa. Se uma doença atingir apenas alguns poucos (ainda que milhares, na correlação com os gastos necessários para a pesquisa), certamente estarão fadados a permanecerem doentes e abandonados à própria sorte pelo mercado. Isso indica que a base do mercado não é mesmo ética.

É por essas e outras que cada, vez mais, os Governos têm intervindo no mercado de medicamentos, quebrando patentes. Já que o mercado não tem base moral, a política, que deve se sustentar nela e, também, nos sistemas legais justos e protetores da dignidade da pessoa humana, deve bloquear os abusos.

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1 Direção: George Miller. Produção: 1992, com Nick Nolte, Susan Sarandon, Peter Ustinov e outros. Universal Pictures Internacional.