A pessoa jurídica como consumidora - Parte I
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
Atualizado às 07:45
Como tenho visto algumas decisões judiciais e, também, posições doutrinárias que afirmam que pessoa jurídica não pode ser consumidora a não ser em situações muito especiais, resolvi voltar ao tema, visando deixar claro aquilo que está estabelecido na Lei, isto é, no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Para facilitar a leitura neste nosso querido espaço e tentar apresentar um panorama completo da questão, escrevo este artigo dividindo-o em duas partes: uma nesta semana e o complemento na próxima. Farei um resumo do que escrevi em meus livros1.
Começo abordando o previsto no caput do art. 2º do CDC:
"Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".
A Lei não deixa dúvida de que a pessoa jurídica é consumidora. Acontece que a mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões.
Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e, também, a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc.
A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito. E não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire o produto ou o serviço (ou seja, paga o preço) como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome.
Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores.
A norma fala também em "destinatário final".
O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentarei resolver. Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor.
Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire roupas para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90.
O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor? E um despachante que adquire num grande supermercado um laptop para desenvolver suas atividades, é considerado consumidor?
Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinarei, detalhadamente, cada situação.
Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor.
Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor.
Nas duas hipóteses acima as situações jurídicas são simples e fáceis de ser entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/ comercialização/produção). O CDC regula o primeiro caso; o direito comum, o outro.
Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar?
A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pela Lei protecionista (o que será confirmado pela exposição que se segue).
Todavia, existem outras situações mais complexas. Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veículo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor:
A visualização da hipótese é simples. Estamos diante de situações cíclicas da produção, em que no polo final do ciclo aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final".
Porém, vou recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e, para tanto, encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo CDC?
A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica.
Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora? Mas não são simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista?
O problema está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (no seu art. 3º).
Há meios, porém, de solucionar a pendência.
Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do aparelho e, portanto, consumidor?
Passo, agora, às respostas, segundo meu ponto de vista.
Poderíamos responder, no caso do álcool, que o usineiro é "destinatário final" da usina e, assim, aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop.
Contudo, todos esses bens são típicos "bens de produção"?
O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são. Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações?
Sem dúvida que não.
Em casos nos quais se negociam e adquirem bens típicos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte.
A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum:
Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da lei 8.078/90?
Ora, que diferença existe entre o despachante como pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o aparelho para casa e escreve uma carta de amor?
A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra. O Código ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção.
Para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens.
Com efeito, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira.
Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros.
A situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço de despachante.
Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis.
Assim, posso responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC.
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Continua na próxima semana.
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1 Por exemplo, no Curso de Direito do Consumidor (14ª. ed., 2022. São Paulo: Saraiva).